quinta-feira, 16 de abril de 2020

A vida em tempos de coronavírus (28)


Opinião


Entre os 14 e 16 anos de idade trabalhei como office boy em um posto de arrecadação e pagamentos de um instituto de aposentadorias. Na época, o modelo de  previdência social ainda era o criado pelo Estado Novo na década de 30, isto é, existiam os institutos de pensões e aposentadorias (IAPs) que eram caixas bancadas por trabalhadores, patrões e Estado. Um modelo que atendia às categorias mais organizadas, assim, existiam os IAPI, IAPC, IAPM, IAPB, IPASE  além de outros. Eram, respectivamente, os institutos de aposentadoria e pensões dos industriários, comerciários, marítimos, bancários, servidores do estado etc. A estrutura original foi se modificando e, mais tarde, após o golpe de 64, em 1966 , foi criado o INPS. Eu trabalhei auxiliando um funcionário do IAPC,  e então conheci “Seu Borralho”.


Seu Borralho era aposentado e tratado pelo sobrenome. Não lembro seu primeiro nome. Tinha uma das pernas mecânica e apoiava-se em bengala. Ele era uma figura bem caricata com traços que  o assemelhava muito aos do ex-presidente Jânio Quadros. Um bigode enorme que escondia a boca, e fazia questão de aguardar a vez de ser atendido porque era conversador e não perdia a oportunidade. Não era chato, e isso era fundamental. Oferecíamos uma cadeira e ele distraia todos com suas conversas.

Seu Borralho era presidente ou coisa que o valha de um grupo da fraternidade Ordem Rosacruz (não sei qual) que funcionava em sua residência. Sempre que cumprimentado “como vai o senhor?”, ele respondia: “a cada dia que passa, eu continuo cada vez melhor!”. Tratava-me carinhosamente e fazia questão de me aconselhar. Do seu jeito e com suas palavras, afirmava que aquela resposta afastava os “maus olhados” que pudessem vir junto com os cumprimentos.

Se não fosse tão criança possivelmente teria aproveitado mais a convivência com aquele velhinho meio maluco que não devia ter muito mais idade do que a que eu tenho hoje. Mas, embora sem a neura de Seu Borralho, o fato é que nunca esqueci o aprendizado e, muitas vezes, respondo aos cumprimentos dessa forma. É bem interessante porque a resposta, quase sempre, provoca uma espécie de surpresa ou susto.

Na portaria do prédio onde moro, onde sempre tem acúmulo de passantes ou visitantes, vez ou outra, alguns porteiros, de sacanagem, cumprimentam-me em voz alta, botando uma pilha para ouvir a resposta que já conhecem.

Geralmente a expectativa do outro é de uma resposta pessimista e formal, tão descomprometida quanto costumam ser os cumprimentos cotidianos: “como vai ... tudo bem?”, e a resposta que assimilei de Seu Borralho empurra o interlocutor a pensar sobre si e sobre o seu próprio cumprimento.

Isolado pelo coronavírus não tenho exercido esse hábito. Mas, não deixo de pensar sobre a adequação dessa resposta na situação atual. Não disponho de Seu Borralho para conversar sobre isso e, pela lógica da natureza, ele já não deve sequer existir.


Na situação atual, além de um cenário sofrido, ainda temos que tratar com fascistas que foram indevidamente levados ao poder. Nesse momento, a trupe está apresentando um esquete onde dois palhaços fascistas, um fantasiado de presidente e outro de ministro da saúde, disputam um troféu de “maior imbecil”. Registre-se que ambos são mais do que qualificados para a disputa que trata apenas de uma comparação de currículos.

A disputa dos imbecis revela bastante sobre a nossa sociedade. Estamos bem doentes, além da Covid-19. Infectados por um vírus que, na contramão do primeiro, em vez de isolamento requer ajuntamento e agitação.  Requer botar o bloco na rua, pra gemer, gingar, pra dar e vender. Botar pra quebrar! E pra isso estou prontíssimo. Se alguém perguntar, a resposta está na ponta da língua:  “a cada dia que passa, eu continuo cada vez melhor!

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