domingo, 19 de junho de 2016

Cobras e lagartos sobre jacarés e ariranhas

Leituras para distrair

Conversando sobre o caso do jacaré que mastigou um garotinho em Orlando – USA, no dia 13 de junho, último, um dos meus filhos comentou que estranhava o anúncio de baixa quantidade de ocorrências deste tipo lá, em Orlando.

Segundo ele, aquela região tem jacaré pra cacete, a ponto de existirem trabalhadores com a missão específica de raspar do chão restos de jacarés que são esmagados pelos automóveis nas estradas. E no intervalo de tempo em que ele morou por lá, o condomínio em que morava recebia visitas regulares de funcionários da prefeitura com instrumentos para realizar vistorias e recolher jacarés que estivessem em locais inadequados tais como quintais, pequenos lagos caseiros ou piscinas.

Mas, conversa vai e vem, e o fato da tragédia ter acontecido em um parque de diversões (Disney), lembrei e contei para eles (os "meninos" com os quais eu conversava) sobre um caso das ariranhas em São Paulo, nos anos setenta, quando eu morava lá. 

Foi no Zoológico (acho), em setembro de 1977, quando uma criança entrou ou caiu no poço das ariranhas sendo atacada por elas. Para quem não faz ideia, ariranha é um bicho feroz e conhecido como “onça-dágua”.

Outro visitante que estava com mulher e filhos, e nada tinha a ver com a criança que caiu no fosso, mergulhou para salvá-la. A criança foi salva, mas o infeliz morreu deixando a família que assistiu à tragédia. O herói era sargento do exercito brasileiro.

O então colunista da Folha de São Paulo, Lourenço Diaferia (1933 – 2008), fez uma crônica emocionada relacionando a atitude do sargento. Em seu artigo (link abaixo) ele citava o sargento como verdadeiro herói popular, comparando-o aos mitos estáticos como o representado pela estátua do Duque de Caxias, um monumento muito conhecido na cidade e que era (ou ainda é) uma referência próxima à antiga rodoviária. ”Prefiro este sargento ao Duque de Caxias”, escreveu Diaferia.

O artigo emputeceu a ditadura. Os chefões de então, Geisel, Hugo Abreu e Silvio Frota tomaram o artigo como uma ofensa a um símbolo nacional. O Diaferia entrou em cana, não sei se ganhou umas porradas, mas segundo a própria Folha de São Paulo, que havia apoiado o golpe militar há mais de 10 anos, o jornal foi ameaçado de ser fechado por ameaça direta ao seu proprietário.


Resgatei a crônica do Diaferia para mostrar para aos meninos. Mas, reli, naturalmente, e constato que ela continua emocionante e atual, assim como há quarenta anos. Compartilho registros que coletei e guardei.


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Sumário do caso e reprodução do texto do Lourenço Diaferia

Matéria da Folha relata a censura ao texto e a ameaça de fechamento do jornal




Personagens - A ariranha está sem farda. Outros são: Geisel, Hugo Abreu e Sylvio Frota


quinta-feira, 16 de junho de 2016

Dor de um punhal

Leituras para distrair


Essas anotações são réplica de mensagem que enviei a uma pessoa amiga. Em uma conversa usamos, sem perceber, a palavra punhal. Uma palavra antiga e até dramática que provocou o nosso riso e o registro a seguir.

Certamente existem outros, mas posso assegurar que esse, na foto abaixo, é um autêntico "punhal" cujo dono original  foi um trabalhador. Não era marginal, ganhava a vida como operário naval, mas cultivava fama de valente e assim era conhecido nos ambientes que frequentava quando ainda havia espaço para figuras do seu tipo. O seu nome era Reynaldo - o tio Nadinho - irmão mais velho do meu pai.

Ele era presença frequente em nossa casa porque morávamos nos fundos da residência da minha tia e madrinha, também irmã do meu pai e que operava como uma matriarca da família. Ela era  a mãe de santo do terreiro de umbanda que lá funcionava e que era um núcleo agregador da sua irmandade, em sentido literal, composta de cinco homens e duas mulheres.

Tio Nadinho, o mais velho, apesar de trabalhador, levava uma vida desregrada se comparada aos demais irmãos. Sustentava família, mas claramente não tinha o mesmo compromisso que os demais. Morava num “morro”, no bairro Engenhoca, divisa de São Gonçalo e Niterói. Mas, naquela época o morro não era favela nem local de miséria, embora carregasse o estigma de um território marginal.

Vestia-se com calças largas, camisas de flanela e mangas compridas. Nunca o vi em camisa de mangas curtas. Usava um chapéu de lona, com abas, quase cowboy, que era um dos identificadores da sua tribo na região. Em linguagem moderna a sua vestimenta formaria um “hashtag valentão”.

Na cintura ele portava um punhal. Sempre escondido quando estava próximo de nós, mas nos seus ambientes era importante que soubessem da existência da arma. Além do mais, ele tinha um andar balançando o corpo, com as mãos raspando nas pernas ao andar, gestos que acentuavam a caricatura do “malandro”. Com o tempo aprendi que não era uma coreografia ensaiada, mas apenas um jeito característico de família que até o meu pai e outros irmãos também possuíam.

Tio Nadinho sempre foi recebido, lá em casa, com alguma reserva por parte do meu padrinho e da minha mãe que eram seus cunhados. O meu padrinho, “dono” da casa principal, não escondia a opinião que o seu cunhado não era flor que se cheirasse, e minha mãe, que ele tratava por comadre, eriçava os pelos tentando proteger o meu pai e buscando mantê-lo longe das aventuras do seu irmão mais velho.

A relativa animosidade na recepção se justificava por duas razões principais. Uma delas era porque, geralmente, o visitante irradiava o aroma de umas boas e indisfarçáveis cachaças. Algumas vezes, a situação era tal que ele nem ultrapassava o portão do quintal, um limite que ele mesmo se impunha, respeitosamente. Mesmo assim, ele passava por lá, assiduamente, para prestar contas à irmã que não abria mão da sua visita. E era nossa obrigação (as crianças) ir até ele e cumprir o ritual da benção - “Bença, tio Nadinho!” - que ele respondia com as palavras que estivesse em condições de pronunciar.

Outra razão que justificava a recepção era porque, também muitas vezes, a sua visita era precedida de notícia ou boato sobre alguma arruaça que ele havia promovido no Largo da Morte, atualmente Largo de São Jorge, um espaço de comercio próximo à descida do morro onde ele morava, e onde era tido como um dos valentes locais.

Tio Nadinho morreu com idade avançada para o seu tipo de vida, e de morte natural. Alguma doença que não recordo. Nos tempos atuais sequer teria chegado à idade adulta. Teria sido despachado para o além, bem cedo, junto com a sua valentia. Nas minhas lembranças ele era simpático e cordial, embora não fosse um tipo carinhoso, também comparado aos seus irmãos. Meus primos e primas, seus descendentes, foram modestos e honrados trabalhadores, não sei de nenhum que tenha saído pelas marginais.

Em uma das aventuras de tio Nadinho, o meu pai, ainda solteiro, e que, apesar mais novo, gozava de alguma autoridade sobre o irmão, foi chamado para intervir e desarmá-lo. Dele o meu pai tomou e guardou esse punhal, o da foto, que passou a pertencer à nossa casa, que acompanhou a minha infância e a do meu irmão Sergio. Punhal que ainda guardo comigo e que conjugado com a conversa sobre essa palavra antiga e fora de uso serviu de mote para resgatar essa história, também antiga e de uso nenhum. 

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Sobre a Engenhoca e o Largo da Morte



O punhal