sexta-feira, 18 de março de 2022

Para ocupar a oficina do diabo (3)

 Opinião

 

Cabeça vazia, oficina do diabo. Claro e objetivo, como costumam ser os aforismos populares. Segue, então, sugestão para irmos ocupando essa oficina.

 

Para aqueles que gostam do tema Políticas de Telecom e Informática (TI), sugiro a leitura de uma matéria da revista Piauí - Edição 186, Março 2022, do jornalista Fernando Eichenberg, com o título " O guru do Datagrama - Como a França jogou no lixo a chance de inventar a internet" (link abaixo). 

A matéria é um tributo ao nonagenário engenheiro Louis Pouzin (1931) cujo nome, apesar do pioneirismo dos seus trabalhos na área de TI, não é considerado entre aqueles que hoje são chamados " pais da internet". Isso em decorrência das políticas adotadas pelos governos franceses em período histórico recente. 

Pouzin é reconhecido por suas iniciativas na criação de redes e na busca de uma redes de redes usando " datagramas puros". Os " datagramas" ou " pacote de dados" são formas de organizar as informações trocadas entre os terminais de uma rede de computadores. Uma rede de datagramas puros dispensa o uso de computadores intermediários para organizar essas informações, tarefa que é realizada nos próprios terminais da rede. 

Foi a partir do uso dos " datagramas puros" que se criou o mecanismo de  interconexões entre computadores diferentes: os chamados protocolos TCP/IP, suportes da atual internet. Os criadores desses protocolos, os engenheiros americanos Robert Kahn e Vinton Cerf, são identificados como os " pais da internet", mas o francês Louis Pouzin não recebeu esse crédito, embora tenha obtido outros importantes reconhecimentos por seus méritos. 

O interessante da matéria reproduzida na Piauí não são os aspectos tecnológicos, nem esse é o foco da matéria. Mas, um esboço do tipo linha do tempo de certas questões, disputas e decisões dos governos franceses que desconsideraram trabalhos, conduzidos por Pouzin, que já estavam em fases adiantadas e que até contribuíram para os estudos dos criadores do TCP/IP, como eles próprios explicitam em seus artigos científicos. Teria sido Vinton Cerf quem apelidou Pouzin de " guru dos datagramas". 

É surpreendente verificar os desacertos e contradições nas disputas de interesses e nas decisões dos governos de um país com um histórico  de valorização de políticas de longo prazo para o setor. O mesmo presidente Giscard D'Estaing que detonou os trabalhos que vinham sendo realizados por Pouzin, foi quem criou, em 1976, um grupo específico para " fazer progredir as reflexões sobre os meios de conduzir a informatização da sociedade", uma decisão importante que resultou no então famoso  Relatório Nora-Minc que foi referência de debates em diversos países (a matéria da Piauí não aborda o assunto do relatório Nora). 

Valorizo a matéria da Piauí porque ela estimula pensar sobre as situações e experiências aqui, no Brasil, especialmente nesses momentos em que andamos no vale das sombras da morte política. Não haverá vara ou cajado que nos console e nos faça avançar, se não for um comprometimento político que, nesse caso, significa buscar entender as questões de fundo sem se deixar inebriar pelas seduções dos avanços tecnológicos. 

Também não é o caso de se agasalhar na nostalgia do déjà vu. Ao contrário, os desafios renovam-se a cada dia, e essas reflexões devem ser um esforço para não deixarmos romper o frágil fio de possibilidades para o nosso país tão desgastado por sabotagens e boicotes de importantes iniciativas que nada ficariam a dever as de outros países, tanto em conteúdo como em capacitação e empenho dos seus formuladores. Os exemplos deixo-os para outras conversas, e para não desviar a atenção da matéria cuja leitura estou sugerindo.

 

Segue link para a matéria da Piauí: 

< https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-guru-do-datagrama/> - Acessado em 18/03/2022.

sábado, 5 de março de 2022

Para ocupar a oficina do diabo (2)

 Opinião

 

Cabeça vazia, oficina do diabo. Claro e objetivo, como costumam ser os aforismos populares. Segue, então, sugestão para irmos ocupando essa oficina. 


Quem seria doidão o suficiente para abonar informações advindas de cada um dos lados de opositores em uma guerra? Avançar por esse caminho no caso do conflito da invasão da Ucrânia pela Rússia certamente não é uma boa opção. De qualquer forma, as agências ocidentais de notícias já apontam centenas de casos de óbitos. O tempo afirmará a verdade. Uma vítima que fosse já justificaria todo e qualquer esforço para reverter o quadro. Mas, infelizmente, a realidade política das sociedades humanas não contempla essa avaliação. 

Estamos afogados em imagens, observações, opiniões e avaliações sobre a "guerra da Ucrânia". Para nós, uma guerra pela TV. Para mim, um revival das invasões ao Iraque lideradas pelo EUA em 1991 e 2003. Na primeira vez liderando uma coalizão internacional abonada pela ONU, e em 2003 quando os xerifes anglo-saxões (EUA e Inglaterra) simplesmente mandaram a ONU para a puta que a pariu, e destruíram o Iraque com o pretexto mentiroso que o país produzia e escondia armamento de destruição em massa. Foram 150 mil iraquianos mortos contra 50 ou 100 americanos. 

Essas guerras foram ou são justas? Quem inventou historia que existe guerra justa? Existe uma ética da guerra?

 Foi pensando nisso que achei oportuno resgatar e divulgar que tais questões foram o tema da aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em Bioética da Escola Nacional de Saúde da Fiocruz em setembro de 2017 proferida pelo cientista político e professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, José Luis Fiori. 

Já divulguei essa aula (link) em outras ocasiões para alguns colegas, mas repito o gesto pela oportunidade dos acontecimentos. A aula propriamente dita inicia no minuto 44:20. A parte preliminar até pode ser pulada, mas adianto que é ótima, onde o professor comenta alguns aspectos conjunturais e aqueles que o levaram a se interessar e aprofundar-se no estudo do tema. 

Para o professor Priori, a invasão do Iraque de 2003 determinou o fim de um universalismo ético que, bem ou mal, determinava uma ordem política internacional que mudou, assim como ratificou a intervenção da Rússia na Síria em 2015/2016, mas essas observações estão nas preliminares da aula. 

A aula faz um resgate histórico interessantíssimo mostrando a "guerra" como um fato recorrente e característico da formação social do homo sapiens; aborda qual teria sido a gênese do conceito de uma ética da guerra – guerra justa; e como as sociedades se organizaram adotando aqueles conceitos até o cenário atual, século XXI de organização geo-politica do mundo. 

Trata-se de um excelente resgate histórico feito por um pesquisador competente e consistente, super-reconhecido entre os seus pares. Não caberia aqui uma resenha, a aula fala por si. Arrisco dizer que afetará diretamente o seu olhar sobre os conflitos em que estamos imersos.

 

"José Luis Fiori abre Programa de Bioética da ENSP" – Aula inaugural em 01/09/2017 – Acesso em 28/02/2022 <https://www.youtube.com/watch?v=8b4yOwi4JFg&t=2707s>

sexta-feira, 4 de março de 2022

O cogumelo e a rosa

 Leituras para distrair

Sei bem pouco de outros da minha geração sobre as lembranças dos tempos da Guerra Fria. Os acontecimentos correntes fizeram-me ver que nunca conversei muito sobre isso, e também que algumas lembranças ficaram. 

As lembranças mais nítidas são dos testes atômicos que eram realizados pelos Estados Unidos (EUA) e pela União Soviética (URSS) em regiões relativamente isoladas do mundo. 

Não tínhamos acesso à TV e as notícias chegavam por jornais e rádio. Sabíamos mais dos testes nucleares americanos, e os jornais publicavam imagens do pavoroso "cogumelo atômico", sempre com ameaças da possibilidade de uma merda daquelas explodir sobre nossas cabeças a qualquer momento. A figura lírica da "Rosa de Hiroshima" foi criada pelo Vinícius em 1946, logo após as bombas em Hiroshima e Nagasaki, mas só viria a ser popularizada nos anos 70 com o Ney Matogrosso. Naquela época, o terror era o tal cogumelo. 

Outra lembrança marcante, essa de um fato mais específico, foi a da "crise dos mísseis em Cuba", quando os EUA impuseram um bloqueio naval para impedir a chegada de uma frota soviética que estava a caminho da ilha com materiais para a construção de uma base de mísseis. 

Após a invasão frustrada dos EUA à ilha de Cuba (Baia dos Porcos), o governo da ilha tratou com a URSS a instalação de uma base de mísseis balísticos, praticamente no quintal dos EUA. Para os americanos a autodeterminação do povo cubano era uma ameaça ao seu território, e bloquearam o acesso à ilha enquanto para lá se dirigiam navios soviéticos, e o impasse chegou ao limiar de um conflito nuclear (qualquer coisa parecida com a crise atual envolvendo Ucrânia, OTAN (leia-se EUA) e Rússia não será coincidência). 

Foram dias de grande pavor, acho que para o mundo. Ainda crianças não compreendíamos o que estava ocorrendo. Ouvíamos sobre o risco de uma tal guerra atômica e destruição total do mundo. No meu caso, decorávamos os afluentes do rio Amazonas, mas sem qualquer visão sobre geografia política. Mal sabia sobre o Peru onde nascia o rio Amazonas, e muito menos sobre os Estados Unidos, União Soviética ou Cuba. 

A minha iniciante escolarização de ginasial já estava além da precária escolarização primária dos meus pais, desse modo não havia muita informação em casa. Lembro-me de um professor que, sem muito sucesso, esforçou-se em traduzir para a nossa turma de escola sobre o que estava ocorrendo. 

Hoje percebo que em minha imaginação infantil não tinha sequer noção sobre escala de tempo. Na crise dos mísseis, as bombas de Hiroshima e Nagasaki tinham explodido sobre os japoneses a menos de 20 anos, precisamente 17 anos se contabilizarmos o período de 1945 até 1962. Para os adultos da minha infância tinha sido "ontem".  

Para uma melhor comparação: o 11 de setembro 2001, derrubada das torres gêmeas do WTC, já está mais distante para nós do que a distância em tempo entre a bomba sobre Hiroshima e a crise dos mísseis de Cuba para os nossos pais. Fico tentando imaginar como deve ter sido angustiante para a galera daquela geração (nossos pais) a ameaça de um conflito atômico no qual todos iriam se fuder, e sem qualquer chance de reagir. O conflito OTAN – Rússia - Ucrânia parece estar trazendo de volta esse tipo de pesadelo. 

É claro que a guerra não é uma novidade na história da humanidade. Ela é o limite da política que, por sua vez, reflete uma luta entre as classes sociais. Mas, é foda quando sabemos a classe dominante, visando manter o seu status, está sacrificando até a continuidade da espécie, destruindo o seu suporte ecológico. Nessas condições, uma autodestruição imediata, atômica, já não parece tão absurda. 

A idade afasta de mim o que seria um natural medo da morte – cago pra ela. Mas, entristece-me a ideia que os meus netos, já obrigados a viver com as restrições de condições ambientais do planeta, tenham também que crescer e conviver com essa porra dessa ameaça. Penso bastante nisso. Tomara que tudo não passe de apreensões infundadas de um vovô velhinho e superprotetor.  

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quarta-feira, 2 de março de 2022

Para ocupar a oficina do diabo

 

Opinião

 

Cabeça vazia, oficina do diabo. Claro e objetivo, como costumam ser os aforismos populares. Segue, então, sugestão para irmos ocupando essa oficina.

 

Muito interessante e de agradável leitura o artigo "Poder e desenvolvimento – os ponteiros do mundo" dos professores Jose Luis Fiori e William Nozak. Um ótimo antídoto de bolso para quem se vê obrigado a tratar com o blá, blá, blá das aporrinhantes figuras que fazem coro com o discurso jeguista ou guedista do "vender tudo". São os que enchem a boca arrogando-se como liberais e defensores da presença zero do Estado no desenvolvimento do país. Acho que esse bate-boca, recorrente, retomará fôlego nos espaços da iminente disputa eleitoral.

Os professores apontam aspectos fundamentais da história do desenvolvimento econômico moderno e também da economia clássica que ficam sempre escondidos na narrativa liberal. A partir daí, comentam sobre o momento atual, quando o Brasil entra em um processo de autodestruição, segundo eles análogo ao da Rússia dos anos 1990.

As políticas liberais que alguns tentam fazer dominantes no Brasil contrapõem-se àquelas dos próprios Estados Unidos, a potência líder do mundo liberal, que voltou a adotar – de forma explícita e declarada – o nacionalismo econômico da Alemanha do século XIX, da Rússia do século XX e da China do século XXI.

Os EUA, exemplificam os professores, apostam em medidas de intervenção estatal que chegam até a superar aquelas adotadas para a recuperação da crise de 1929 (o antigo New Deal). Mas, também a China, com projetos estatais que buscam consolidar o protagonismo da sua estrutura produtiva na quarta revolução industrial (indústria 4.0); França e Alemanha formam alianças visando acelerar o desenvolvimento industrial em parte da Europa, além da Rússia com aposta estatal na expansão da infraestrutura de gás e logística.

Nas palavras dos professores, tudo isso para escândalo dos economistas liberais, da elite financeira e dos generais brasileiros, que, atrasados, insistem em manter o Brasil na contramão dos ponteiros do mundo. Sugiro a leitura.

 

Publicado no site A Terra é redonda, em 05/02/2022 – Acesso em 25/02/2022

https://aterraeredonda.com.br/poder-e-desenvolvimento-os-ponteiros-do-mundo/