segunda-feira, 27 de maio de 2013

Não trafegue na faixa!


Crônicas de militante

A ideia era ousada: içar uma faixa na Av. Pres. Vargas, no cruzamento com a Av. Passos, no Rio de Janeiro, na largura de cerca de 14 metros, de um lado a outro de uma das pistas centrais e numa altura de cerca de 17 metros das luminárias da avenida.  Na faixa, letras enormes, pintadas em vermelho, formavam a palavra LULA ao lado de um aparelho telefônico. Para garantir leveza e baixa resistência ao vento, o material usado foi isopor montado em uma rede de pescar. A construção foi no quintal de um companheiro e os construtores foram os militantes e familiares, incluindo crianças. Nosso objetivo era o comício em 10 de novembro de 1989, encerramento da campanha do primeiro turno da primeira eleição direta para presidente após o término da ditadura, e a categoria havia autorizado a participação das entidades.

A dificuldade estava na instalação. Sem outro recurso, dispúnhamos apenas de um longo fio de nylon que já havíamos estendido, em um evento anterior, desde uma sala no 17º. andar de um prédio na esquina até o topo de uma das luminárias. O projeto de içamento da faixa era uma obra de engenharia que se confundia com uma obra de arte. Um conjunto infindável e emaranhado de laços e nós entre cordões e pontos da faixa que deveriam ser passados, trespassados, puxados, repuxados, esticados, suspensos e ajeitados numa sequência rigorosa, cujo produto final, como num ato de ilusionismo, seria a faixa içada e esticada como queríamos. E essa mágica precisava ser realizada durante a madrugada do dia do comício, com trânsito mínimo, e pelos militantes que pudessem colaborar.

Foi grande a decepção dos colegas que sabiam do projeto e não viram a faixa quando chegaram pela manhã para trabalhar na Embratel. Ocorre que subestimamos as dificuldades e não conseguimos. Entre tantos problemas, um cordão de nylon que estava impregnado com cola e estendido na rua não pode ser recolhido a tempo ficando colado nos pneus de um maldito caminhão que passou. O conjunto foi arrastado danificando parte da faixa e embolando as linhas – um fracasso que nos fez desmontar o circo e abortar a operação. Fomos embora para um resto de madrugada de insônia e autocríticas. Mas, também de humor, porque um de nós que era um  projetistas da teia de aranha que viabilizaria a suspensão da faixa, sofria de uma surdez avançada que ele recusava tratar. Assim, apontamos a sua responsabilidade dizendo que a faixa foi arrastada porque ele não ouviu os insistentes gritos de alerta sobre a vinda do tal caminhão. Claro que ele não foi o responsável, mas o nosso bom humor e camaradagem permitia e não poderíamos deixar passar esta oportunidade.

Mas, a manhã seguinte, dia do comício, foi recompensadora. O estímulo dos companheiros que chegaram venceu o desânimo pelo fracasso na madrugada, e decidimos que a faixa seria reparada e que subiria, ainda durante o dia, visto que o expediente da tarde seria liberado e a avenida interditada para o comício. Formamos, então, uma operação de guerra, com militantes passando fios para lá e para cá, no meio da avenida, e sem que ninguém entendesse o que estava ocorrendo. Os militantes sabiam que se tratava de uma faixa, mas só uns poucos sabiam ou queriam compreender aquele complexo esquema de laços e nós. A garra e a confiança bastavam. Puxavam daqui e esticavam acolá, conforme fossem as instruções. Sem celular, as instruções eram dadas como comandos, aos gritos e por sinais, em meio a uma multidão que já se deslocava para o comício e alguns curiosos que assistiam. E a faixa subiu linda, ainda dia claro, sob aplausos e abraços. Resistiu bravamente ao vento durante todo o comício e podia ser vista desde a Candelária. A sua foto é uma grata lembrança.

O comício teve a presença estimada de mais de cem mil pessoas, e no segundo turno as forças de esquerda agregaram-se num embate (que foi perdido) contra o Collor, representante da direita. Mas, a partir daqui já é História do Brasil. 

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segunda-feira, 20 de maio de 2013

O deputado, um chulo. Os militantes, uns sacanas.



Crônicas de militante

Para convencer Constituintes de 1988 a votarem em favor da anistia dos trabalhadores que participaram de greves, uma das tarefas era abordá-los nos corredores do Congresso Nacional quando se dirigiam ao Plenário, especialmente nos dias de votação dos temas de maior destaque. Naqueles dias eles se deslocavam em grupos, exibiam-se para fotógrafos, faziam-se simpáticos e, geralmente, não rejeitavam abordagens. Mas, não era assim todo o tempo. Em grupos menores, nos seus gabinetes, sentindo-se seguros e poderosos, eles mostravam quem eram, mesmo que não assumissem explicitamente quem estavam representando. Brilhantes, medíocres, sinceros, dissimulados, humildes, arrogantes, batalhadores, coçadores, tinha constituinte de todo o tipo – nenhum bobo. Muitos medíocres, mas espertos.

Um deles odiava os sindicatos. E a CUT parecia ser a sua inimiga maior. Ele conhecia bem a campanha da anistia, sabia sobre o trabalho que estávamos fazendo e frequentemente cruzava com a moçada que estava distribuindo cartazes, visitando os gabinetes etc. Ele tinha um pavio curto e fez fama assim, de brigão, troglodita. Aliás, até representava este papel em um programa popular de TV de audiência nacional e que foi o trampolim para sua eleição.

Ao passar por nós ele não conseguia se controlar. Sem constrangimentos, em tom alto que garantisse que estávamos ouvindo, mas não o bastante para comprometê-lo, considerando que era o corredor do Congresso Nacional, ele vociferava: Vocês não me enganam! Se fazem de santinhos, mas é tudo agitador! Tudo da CUT! Querem anistia, né? Não vão ter anistia porra nenhuma, todos vão se fuder! Vou botar na bunda de vocês! E os gritos eram acompanhados de gestos. Usando o polegar e o indicador mostrava-nos orifícios, mas não era um Ok. Também nos brindava com uns “Top, Top” batendo a palma de uma das mãos sobre o punho fechado da outra. Na época ainda não havia na linguagem brasileira de sinais pornográficos o apontamento para cima do dedo médio, gestual que foi incorporado, mais tarde, dos americanos.

 Acontecia que entre os militantes também tinha gente de todo o tipo, felizmente. Alguns queriam brigar, partir pra cima do deputado, e isso era tudo o que ele queria. Outros engoliam a raiva. E havia militantes sacanas, provocadores, que faziam questão de botar pilha no deputado, de bater palmas para ver o maluco dançar. Ao cruzar com o deputado, uma troca de olhares, um cumprimento irônico, uma risada fingidamente abafada era o que bastava. O cara surtava. Nos dias em que o nosso ânimo estava baixo era até um divertimento quando esta cena acontecia. Mesmo com a crítica da coordenação que cuidava para o trabalho não desandar com a ultrapassagem de limites na brincadeira.

O melhor ocorria nos dias de grande movimentação nos corredores. Nestes dias o deputado baixava o facho. Não era burro e sabia de suas limitações. Os militantes, por sua vez, tratavam-no como aos demais. Apresentavam-se, informavam que estavam ali para buscar o voto favorável dos mesmos, solicitavam a permissão para afixar cartazes da campanha nas paredes externas dos seus gabinetes, pediam autorização para afixar um adesivo em suas lapelas, além do tradicional gesto da mão no ombro ao caminhar, uma oportunidade para colar um adesivo nas costas do deputado sem que ele percebesse. Assim, o parlamentar chulo circulou muitas vezes pelo Congresso exibindo adesivos da campanha pela anistia dos trabalhadores que ele odiava, e era alvo de chacotas, como ocorre nas brincadeiras de rabiola entre garotos nas escolas, até que algum dos seus pares ideológicos o alertasse.

Conquistamos a anistia e o deputado seguiu seu caminho, inglório e vergonhoso. Suas pragas e esconjuros viraram contra si próprio. Membro da “tropa de choque de Collor” e réu confesso no caso “mensalão”, teve o seu mandato cassado em 2005 por quebra de decoro parlamentar.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Fazendo queixas ao bispo


Crônicas de militante


Em 2013 o cardeal católico D. Paulo Evaristo Arns, símbolo da luta em defesa dos direitos humanos, completará 92 anos de idade, e foi com ele, ainda com 68 anos, que tivemos a oportunidade de conversar em audiência, eu e mais dois companheiros. Estávamos empenhados em denunciar, por todos os meios possíveis, a postura do ministro das Comunicações que se recusava a cumprir a anistia constitucional dos empregados do setor. Assim, a manifestação pública de uma autoridade como o cardeal Arns seria importante para os nossos objetivos. Com a intermediação de um parlamentar que tinha base em comunidades católicas conseguimos uma audiência, e lá estávamos, numa tarde de julho de 1989, na antessala do cardeal, em S. Paulo, aguardando e observando outros que também esperavam. Brasileiros e estrangeiros.  Alguns religiosos, outros não.

O encontro pessoal com o cardeal Arns reafirmou a imagem pública que conhecíamos. Ele nos recebeu com uma cortesia, afetuosidade e atenção que foi  além das nossas expectativas, ouvindo-nos sem demonstrar gestos de impaciência ou intolerância, e logo manifestou solidariedade e compromisso de ajuda, embora com um alerta. Disse-nos que tinha dúvidas se o seu engajamento seria positivo ou negativo para os nossos propósitos, considerando que ele também era um alvo das ações e posturas negativas do então Ministro das Comunicações.

O cardeal relatou-nos a situação da Rádio 9 de Julho, uma concessão do presidente Kubitscheck à Arquidiocese de São Paulo, feita em 1955, que cobria todo o estado, além de outros do país, muitos países latino-americanos e alguns países nórdicos europeus com grande audiência e repercussão. A concessão foi cassada em 1973, pelo governo Medici, face aos seus posicionamentos em defesa dos direitos humanos e denúncias de arbitrariedades do regime militar tais como a supressão das garantias individuais, as prisões política, torturas, desaparecimento de pessoas, etc.

Segundo o cardeal, a devolução da concessão teria sido um compromisso do falecido presidente Tancredo Neves, mas que não foi cumprido pelo ministro Antônio Carlos Magalhães e o presidente Sarney que lhe ofereceram, em contrapartida, uma emissora em Cotia cujo sinal nem chegava a São Paulo e que ele (o cardeal) declinou. Com outros relatos e nos dedicando um tempo generoso de sua agenda, o cardeal informou-nos que conversaria com os seus assessores sobre como poderia colaborar e assim o fez. Sabíamos desde o início das dificuldades do cardeal que já enfrentava batalhas em seus próprios domínios. O Papa João Paulo II, para reduzir a influência religiosa e política do cardeal, havia recentemente dividido a diocese de São Paulo em cinco novas dioceses. Ainda assim, alguns dias após a audiência, recebemos a notícia de uma carta da Arquidiocese, cuidadosa, mas exortando o Ministério das Comunicações para o cumprimento da Constituição no que se referia à anistia dos trabalhadores de Telecom.

A Rádio 9 de Julho só foi devolvida à Arquidiocese em 1996, no governo FHC, e foi também neste ano que o cardeal Arns, com 75 anos, apresentou sua renúncia e recolheu-se ao silêncio, de onde não saiu, nem mesmo para as celebridades de comemoração dos seus 90 anos.

Guardo este encontro como inesquecível, a oportunidade de conversar com um militante exemplar que, em 1973, ao ser nomeado bispo, vendeu o Palácio Episcopal, que seria a sua residência,  e com a grana financiou núcleos comunitários na periferia de S. Paulo; que denunciou e reclamou sobre a tortura diretamente no gabinete do ditador Medici, que de lá praticamente o expulsou, irritado, dizendo que o seu lugar era na sacristia; que abriu a Sé, em São Paulo, em 1975, para um culto em memória do jornalista Wladimir Herzog .

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Um grande susto e uma boa corrida


Crônicas de militante

Promover uma greve geral não é fácil. Enfrenta-se o patrão e sua segurança privada; o governo que via de regra confunde-se com o patrão e mobiliza as forças de segurança pública; a alienação de trabalhadores que não relacionam suas dificuldades com a necessidade de sua mobilização e capacidade de reação; as categorias não se relacionam como classe. Além do mais, há que atuar especificamente junto aos pontos que funcionam como símbolos, como estandartes de mobilização das lutas  No Rio de Janeiro, por exemplo, uma greve geral não se caracteriza se não pararem os ônibus urbanos.

Mesmo forte e com adesão expressiva, simbolicamente, a greve com ônibus rodando não será considerada greve. E com esta avaliação, patrões e governo usam todos os recursos para colocar os ônibus nas ruas, e os grevistas para pará-los. E parar um ônibus que já começou a circular, só com uso do miguelito, uma peça formada por dois pedaços de vergalhão de 8mm, de 12 a 14 cm cada, as pontas chanfradas para facilitar a perfuração, dobrados em L, unidos e soldados pelas alças dos L. Em qualquer posição que seja deixado, o miguelito sempre ficará apoiado em um tripé com uma das 4 pontas para cima, em posição ideal para arriar um pneu.

Mobilizados para o sucesso da greve geral de março 1989, convocada pela CUT e a CGT, contra o Plano Verão, saímos logo nas primeiras horas do dia para avaliar a mobilização e a paralisação dos rodoviários, uma categoria com uma história sindical complicada. O dia precisava amanhecer com cara de greve, ou seja, sem ônibus circulando. Os piquetes nas empresas de ônibus precisavam ser efetivos e os miguelitos precisavam cumprir a sua função junto às unidades com fura-greves que insistissem em circular.

Estávamos no subúrbio e avistamos um ônibus parado, em um ponto não convencional, possivelmente aguardando para começar a rodar. Aproximamo-nos para abordar o fura-greve, tentar convencê-lo a parar e, naturalmente, para posicionar convenientemente alguns miguelitos como precaução para um insucesso no convencimento. Batemos na lataria do ônibus anunciando a nossa chegada e caminhamos para as portas. Foi quando o ônibus, que parecia vazio, iluminou-se e ficou cheio de PMs. Policiais que não avistamos porque estavam escondidos ou porque descuidamos de verificar. O fato é que não deu para compreender o que acontecia e ninguém ficou para esclarecer. O ônibus criou vida, como uma colmeia atiçada, com abelhas fardadas descendo para nos encher de porrada. E nós ... corremos. Muito! O instinto apontava a direção e o medo dava energia. Felizmente, os instintos e medos, meus, de um companheiro e de uma companheira, os três telefônicos, estavam em sintonia, o que nos permitiu correr na mesma direção. Os demais dispararam, sei lá para onde.

A corrida da nossa companheira foi prejudicada por uma dificuldade respiratória, mas tivemos energia suficiente para puxá-la, de braços dados, e disparamos por ruas que não conhecíamos, entramos em quintal de residência e nos escondemos. Algo impossível nos dias atuais. Para sorte nossa, a polícia estava designada para proteger os empresários e suas frotas, não era um pelotão de extermínio como os noticiados hoje. E a nossa tática naquele momento, revolucionária, foi correr, esconder, e esperar para retornar quando o ambiente acalmasse.

Não vimos se o ônibus colmeia chegou a ser abatido. Logo que foi possível saímos dali e partimos para outras tarefas. Mas, os demais ônibus pararam, assim como o metro e os trens. Ao fim de dois dias de greve o Jornal do Brasil estampou em primeira página uma foto da Presidente Vargas, desde a Central até a Candelária, completamente vazia de ônibus. Uma greve geral vitoriosa, a maior do país, até hoje, com uma adesão estimada de cerca de 35 milhões de trabalhadores. Valeram o susto e a corrida.