Leituras para distrair
Tio Paulino era um dos irmãos mais velhos do
meu pai, segundo ou terceiro filho na família de seis irmãos. Operário naval
como os outros irmãos, exceto o meu pai que era metalúrgico. De cor parda, alto
e forte, tinha a pele curtida e enrijecida, possivelmente em decorrência de seu
trabalho ao ar livre. Não sei sobre sua profissão específica, mas os operários
navais sem instrução técnica formal, em maioria, eram trabalhadores manuais e
de formação prática. Eram montadores, soldadores, chapeadores,
pintores, eletricistas, maçariqueiros, esmerilhadores, encanadores, entre
outros, que trabalhavam na recuperação de navios em manutenção ou na construção
de novas embarcações. Distinguiam-se conforme suas qualificações e funções nos
estaleiros, nas décadas de 50/60 do século XX, um tempo em que a indústria
naval no estado do Rio de Janeiro ainda podia ser classificada como um sólido
parque industrial.
Tio Paulino tinha uma mão enorme, bastante
calejada, parecia uma palmatória de madeira quando aberta e quase um martelo se
fechada. Era com aquela mãozona que ele batia no peitoril de uma
janela, fazendo-a de um atabaque para o acompanhamento e marcação dos pontos de
macumba entoados no cômodo onde rolavam as sessões de umbanda em nossa casa.
Com os meus pais, morávamos em casa de
meia-água, nos fundos de uma casa maior, casa da minha madrinha, onde um dos
quartos era utilizado para as sessões religiosas. Antes das obras que mais
tarde construíram um ambiente específico para o centro de umbanda, as sessões
ocorriam no tal quarto que tinha janela para uma varanda. Em pé, na varanda, do
lado de fora, e apoiado na janela, tio Paulino acompanhava as sessões. Sua
esposa, tia Helena, além de outros formavam o grupo de médiuns, mas ele não
participava diretamente das manifestações. Pequenino, eu assistia ao seu lado.
Os pontos eram entoados celebrando as passagens das entidades que representavam
os diversos orixás, e tio Paulino se fazia de percussionista.
Essa foi uma das lembranças que guardei dele.
Era um excelente ritmista, embora não participasse de qualquer outra atividade
musical. A mãozona batia forte sobre a madeira do peitoril provocando um som
que sobressaia às vozes e que animava e estimulava o clima dos cânticos e as
danças dos médiuns, incorporados ou não. Nada ensaiado. Espontaneidade e
possivelmente transe. Sorridente, comigo ele era até carinhoso ao seu jeito - a
rispidez ele guardava para orientar suas duas filhas e três filhos, primas e
primos, todos mais velhos do que eu. Ele me incentivava a acompanhá-lo, como se
fosse possível a um moleque de oito anos arrancar algum som daquela madeira
dura que sob as suas pancadas vibravam quase como uma “pele” de tambor.
A chegada da adolescência e, mais tarde, as
alternativas e a ignorância arrogante da juventude me afastaram. Por
circunstâncias diversas os contatos rarearam e avalio que perdi oportunidades
de aprendizados interessantes com ele. Mas, ficou uma lembrança boa.
Dia desses, junto com amigos queridos,
assisti uma apresentação do Lucio Sanfilippo, um artista brilhante, ainda
desconhecido do grande público e de quem gosto muito. Ele associa sua arte aos
seus trabalhos de pesquisador e à sua fé religiosa, assim consegue identificar
e agrupar esses pedaços africanos espalhados em nossa arte e religião.
Jongo, coco, samba, maracatu, cânticos de
candomblé e da umbanda, uma mescla de temas e ritmos que resulta em um canto de
beleza e sensibilidade. Inevitavelmente comecei tamborilar sobre a
mesa. Lembrei-me de tio Paulino no peitoril da janela, e também de outros
familiares e de relações queridas que se foram com o tempo. Gostaria de
acreditar que eles estão por aí, em alguma outra dimensão, quem sabe até ao meu
lado, cantando e dançando.
“Eu só poderia acreditar num Deus que
soubesse dançar” – assim falou Nietzsche através do seu Zaratustra. Eu
não tenho qualquer capacitação para discorrer sobre o filósofo, mas acho que
ele anteviu alguma apresentação do Lucio ou do tio Paulino na janela.
Quem se interessar poderá assistir um pedacinho do Lucio Sanfilippo:
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