sábado, 11 de agosto de 2018

Deuses que dançam


Leituras para distrair


Tio Paulino era um dos irmãos mais velhos do meu pai, segundo ou terceiro filho na família de seis irmãos. Operário naval como os outros irmãos, exceto o meu pai que era metalúrgico. De cor parda, alto e forte, tinha a pele curtida e enrijecida, possivelmente em decorrência de seu trabalho ao ar livre. Não sei sobre sua profissão específica, mas os operários navais sem instrução técnica formal, em maioria, eram trabalhadores manuais e de formação prática.  Eram montadores, soldadores, chapeadores, pintores, eletricistas, maçariqueiros, esmerilhadores, encanadores, entre outros, que trabalhavam na recuperação de navios em manutenção ou na construção de novas embarcações. Distinguiam-se conforme suas qualificações e funções nos estaleiros, nas décadas de 50/60 do século XX, um tempo em que a indústria naval no estado do Rio de Janeiro ainda podia ser classificada como um sólido parque industrial.

Tio Paulino tinha uma mão enorme, bastante calejada, parecia uma palmatória de madeira quando aberta e quase um martelo se fechada.  Era com aquela mãozona que ele batia no peitoril de uma janela, fazendo-a de um atabaque para o acompanhamento e marcação dos pontos de macumba entoados no cômodo onde rolavam as sessões de umbanda em nossa casa.

Com os meus pais, morávamos em casa de meia-água, nos fundos de uma casa maior, casa da minha madrinha, onde um dos quartos era utilizado para as sessões religiosas. Antes das obras que mais tarde construíram um ambiente específico para o centro de umbanda, as sessões ocorriam no tal quarto que tinha janela para uma varanda. Em pé, na varanda, do lado de fora, e apoiado na janela, tio Paulino acompanhava as sessões. Sua esposa, tia Helena, além de outros formavam o grupo de médiuns, mas ele não participava diretamente das manifestações. Pequenino, eu assistia ao seu lado. Os pontos eram entoados celebrando as passagens das entidades que representavam os diversos orixás, e tio Paulino se fazia de percussionista.

Essa foi uma das lembranças que guardei dele. Era um excelente ritmista, embora não participasse de qualquer outra atividade musical. A mãozona batia forte sobre a madeira do peitoril provocando um som que sobressaia às vozes e que animava e estimulava o clima dos cânticos e as danças dos médiuns, incorporados ou não. Nada ensaiado. Espontaneidade e possivelmente transe. Sorridente, comigo ele era até carinhoso ao seu jeito - a rispidez ele guardava para orientar suas duas filhas e três filhos, primas e primos, todos mais velhos do que eu. Ele me incentivava a acompanhá-lo, como se fosse possível a um moleque de oito anos arrancar algum som daquela madeira dura que sob as suas pancadas vibravam quase como uma “pele” de tambor.

A chegada da adolescência e, mais tarde, as alternativas e a ignorância arrogante da juventude me afastaram. Por circunstâncias diversas os contatos rarearam e avalio que perdi oportunidades de aprendizados interessantes com ele. Mas, ficou uma lembrança boa.

Dia desses, junto com amigos queridos, assisti uma apresentação do Lucio Sanfilippo, um artista brilhante, ainda desconhecido do grande público e de quem gosto muito. Ele associa sua arte aos seus trabalhos de pesquisador e à sua fé religiosa, assim consegue identificar e agrupar esses pedaços africanos espalhados em nossa arte e religião.

Jongo, coco, samba, maracatu, cânticos de candomblé e da umbanda, uma mescla de temas e ritmos que resulta em um canto de beleza e sensibilidade.  Inevitavelmente comecei tamborilar sobre a mesa. Lembrei-me de tio Paulino no peitoril da janela, e também de outros familiares e de relações queridas que se foram com o tempo. Gostaria de acreditar que eles estão por aí, em alguma outra dimensão, quem sabe até ao meu lado, cantando e dançando.

“Eu só poderia acreditar num Deus que soubesse dançar” – assim falou Nietzsche através do seu Zaratustra.  Eu não tenho qualquer capacitação para discorrer sobre o filósofo, mas acho que ele anteviu alguma apresentação do Lucio ou do tio Paulino na janela.

Quem se interessar poderá assistir um pedacinho do Lucio Sanfilippo:


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