quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Cotas para negros nas universidades - Opinião

Jorge de Souza Santos – novembro 2008


A propósito da questão das cotas para negros nas universidades, especificamente traduzida no projeto de lei 3627/2004 que institui “o sistema especial de reserva de vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior e dá outras providências”, (
http://www.camara.gov.br/sileg/integras/223523.pdf), manifesto-me a favor da instituição das cotas.

Não me justifico por aspectos formais do projeto. Não teria competência para tal. Entretanto, o assunto tem importância suficiente que justifica uma opinião. Um posicionamento sustentado no modo de ver e de querer a sociedade que vivemos e que viveremos, mais do que no formalismo da legislação.

Com esta visão e antes de tratar diretamente o assunto, faço uma consideração preliminar sobre o que tem sido a base de grande parte das teses e pareceres que disputam as opiniões contra e a favor da instituição das cotas: a questão das raças.

Não me agrada ter como projeto uma sociedade organizada em grupos distintos por raça, especialmente quando esta distinção traz na sua concepção uma idéia de exclusão. Minha opção é pensar a sociedade como uma formação mestiça resultado da integração das diversas etnias que atuam no espaço social.

Mesmo consciente que na realidade brasileira a igualdade racial é um mito, prefiro tê-lo como referência porque no mito há um desejo e, assim, uma possibilidade de transformá-lo em um projeto. Prefiro tratar com o preconceito envergonhado, constrangido e inibido, mesmo que seja por um mito, do que tratar com o preconceito explícito, decorrente de uma escolha pela apartação.

Por outro lado, não me oponho aos que buscam uma identificação étnica. Estou com o professor Boaventura de Sousa Santos: “Só quem pertence à raça dominante tem o direito (e a arrogância) de dizer que a raça não existe ou que a identidade étnica é uma invenção” (Boaventura de Sousa Santos – em As dores do pós-colonialismo -
https://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/163en.php. Esta busca é um direito e uma alternativa, ainda que ela traga consigo o risco de fazer descambar para a discriminação justamente aqueles que dizem lutar contra ela.

Quanto às cotas, mesmo sendo a favor, não acho que elas devam ser tomadas como um estandarte anti-racista ou um instrumento de resgate da identidade cultural negra. Nem acho que, por outro lado, seja uma agressão, uma distorção ou um vilipêndio do sistema educacional brasileiro. Concordo com a adoção das cotas porque se trata de uma ação pragmática que busca compensar e reduzir o atraso de uma parte importante da sociedade na tentativa de evoluir a sua situação socioeconômica para um patamar compatível com os do restante da sociedade.

As cotas são uma ação que terá reflexos socioeconômicos positivos para a população negra como um todo. Uma ação direcionada para um grupo específico que tem um crédito importantíssimo na formação da sociedade brasileira e do qual, queiramos ou não, somos os devedores. Nós, a sociedade, representada pelo estado brasileiro.

E trata-se de uma dívida que persiste, porque na formação da nossa sociedade o estado sempre foi o mesmo. Não houve um rompimento institucional que nos descomprometesse de algumas pendências históricas diferentemente do que ocorreu em outras situações.

Por exemplo, a sociedade francesa pós 1789 não manteve compromisso com nenhum setor específico dela própria, mesmo que este setor tivesse uma história de retração de seus direitos. O movimento francês de 1789 caracterizou-se como revolução porque rompeu com as instituições do poder vigente e outra classe socioeconômica assumiu o poder.

Grande parte, senão a totalidade, dos grupos discriminados e excluídos teve a oportunidade de se manifestar no ambiente revolucionário, de crise e de ruptura, e de cobrar dívidas sociais.

É claro que nem todos os compromissos foram cobrados e resgatados. Além do mais, há contextos a serem considerados na avaliação de quem se apropriou do poder de fato. Porém, 1789 foi um marco de rompimento e de liquidação de contas com o que era a ordem instituída na França até então.

O mesmo pode-se dizer de 1917 na Rússia e até em Cuba, em 1950. O fio do compromisso histórico foi partido, muito embora não se tenha solucionado os enormes problemas e dificuldades que geraram os citados conflitos.
No Brasil não foi assim e a diferença é determinante. A situação de miséria da população negra, que transborda qualquer limite que se estabeleça ou que se tolere, mesmo no modo de produção capitalista, é a situação de um grupo que em nenhum momento determinou as transformações que o Brasil vivenciou. Talvez nem mesmo a sua libertação da escravatura.

A condição da população negra no Brasil é de uma miserabilidade que segue um fio histórico contínuo desde hoje até o início da nossa formação como país. Um fio que não se rompeu, infelizmente. Ao contrário, foi mantido e até fortalecido. Neste contexto, a existência de condições políticas para se praticar as chamadas ações afirmativas é uma oportunidade que não deveríamos deixar passar.
A adoção das cotas não é uma ação revolucionária nem paternalista. É uma ação complementar e, assim, traz consigo a exigência do algo que ela complementa e sem o qual ela realmente não faria sentido. Devemos, então, cobrar e realizar as ações principais e estruturais das quais as ações afirmativas são um complemento e não utilizar o caráter complementar das cotas como um argumento contra a implantação das mesmas.

A implantação das cotas é uma ação tópica, de resultados em curto prazo e apontada para um grupo específico. Não é uma política generalizada e é necessário que seja assim. O combate a desigualdade se faz com ações desiguais. Se as ações forem únicas a desigualdade permanecerá mesmo que em outro patamar.

Certamente a análise social pode ser realizada com outros recortes. Daí identificarem-se grupos que indagam: por que os negros? Por que não os amarelos, brancos, vermelhos, nordestinos, japoneses, gordos, magros, deficientes etc.? Por que não?

A resposta é: por nenhum motivo específico. Esta ação não impede que se realize outras. As dívidas sociais acumuladas em nossa história não entram em exercício findo e saldá-las é um objetivo estratégico. A dificuldade é expor-se na escolha da prioridade e da oportunidade, ou seja, determinar a política, de tomar partido e comprometer-se com os desdobramentos da opção que se faz.

Por exemplo: tais ações precisam ser obrigatoriamente temporárias. Sem este atributo não há compromisso com o futuro, não há compromisso com um eixo principal de luta que justifique e sobre o qual se sustente a ação afirmativa. Apoiadores e beneficiários das cotas devem estar comprometidos para que isto ocorra.
Por último, não será a adoção das cotas que separará nem que unirá brancos e negros. Os brancos e os negros no Brasil já são apartados socioeconomicamente. Vivem uma separação nos papéis que desempenham na produção e na distribuição da riqueza. O estabelecimento das cotas contribuirá para reduzir este tipo de separação, esta distinção de papeis.

A união, se desejada, a convivência, a agregação, ocorrerá ou não na medida em que brancos e negros construirem em conjunto os elementos para tal, em um outro espaço, diferente do espaço socioeconômico. Ocorrerá no espaço dos costumes, dos hábitos, das manifestações de crenças, da comunicação, das preferências estéticas, ou seja, no espaço sociocultural.
A redução do fosso socioeconômico determinará as condições para que esta união ocorra. A história da formação da sociedade brasileira ainda reúne condições para que esta união se consolide. Se ocorrerá, ou não, é outra história.#########