domingo, 17 de julho de 2016

Um talk-show constrangedor

Opinião

Assisti à exibição em vídeo de um talk-show da TV americana cuja abertura é um monólogo do apresentador produzindo risadas da claque enquanto narra situações caricatas sobre o Brasil e as Olimpíadas 2016.  Os editores fizeram uma coletânea de fatos reais sobre as mazelas do nosso país, incluindo a crise política recente, as idas e vindas do projeto das olimpíadas, a nossa pobreza, a degradação ambiental dos nossos espaços naturais, as declarações conflitantes e controversas das autoridades e personagens públicas, manifestações de policiais em aeroportos, fechamento de postos de saúde, as ameaças do o zika vírus, enfim, tinha de tudo. E o fio condutor foi, explicitamente, ou não, a questão da corrupção em nossa sociedade.

A narrativa do script era ilustrada com imagens ao fundo exibindo manchetes e noticiários de jornais justificando cada assunto tratado. Nada inventado, no máximo alguns fatos fora de contexto. Uma narrativa irônica e caricata interrompida apenas pelas observações e caretas sarcásticas do apresentador e pelas gargalhadas da claque. Uma apresentação para fazer qualquer brasileiro (ou muitos, penso eu) sentir-se embaraçado e constrangido.

 A gravação deve estar circulando por aí, pelo mundo, e nada mudará aqueles fatos. Se houver algo que se possa fazer em contraposição àquelas situações específicas, será trabalhar para transformar aquelas realidades apresentadas sobre o nosso país.

Contudo, ao mesmo tempo em que faço essas observações, aproveito a oportunidade para agregar outras que são contrapontos cabíveis e de âmbito geral, mas que nem sempre são considerados quando nos deparamos com tais situações que acabam nos deixando intimidados perante nossos críticos interlocutores. Vejamos!

Juízos e juízes.
Quando se diz – o Brasil é alegre ou o Brasil é corrupto – faz-se uma substituição de termos para que a mensagem fique mais expressiva. Usa-se a palavra Brasil em vez de se referir aos brasileiros ou à sociedade brasileira. Trata-se de uma metonímia. Um artifício de linguagem que valoriza o sujeito ao identificá-lo por um simbólico “Brasil”, mas que, ao mesmo tempo, também permite que a relação do predicado com o sujeito real sofra uma espécie disfarce que só é revelado conforme o nosso interesse de identificação. Assim, quando o atributo é a alegria e a cordialidade identificamo-nos com a sociedade brasileira. Cada um de nós se sente representado. Formamos um povo alegre, cordial, etc. Mas, quando se trata da corrupção ninguém se sente identificado com o atributo, afinal, ninguém se inclui como corrupto. Corrupto é o tal do “Brasil”.

Contudo, este jogo de esconde-esconde não elimina a intenção original. Sempre que se afirma a característica corrupta do Brasil, tal afirmação refere-se, rigorosamente, à sociedade brasileira, classificando-a como corrupta, particularmente se comparada com as sociedades europeias e a americana. E pelo fato de estar escondida pela metonímia, tal afirmação não é questionada. Ela vai sendo repetida sem críticas nem objeções, aqui e acolá, por muitos brasileiros de idades diversas, alienados em relação ao real significado dessas classificações e possuídos por um discurso que reflete uma dominação política e cultural.

Mas, quem saberia afirmar qual o padrão absoluto de medida do nível de integridade que uma sociedade deveria atender para ser, ou não, enquadrada como corrupta?

É obvio que não há um padrão absoluto, e se tal padrão não existe, então, obrigatoriamente, estas afirmações devem decorrer de experiências e comparações com outras sociedades arbitrariamente afirmadas como íntegras e que o discurso dominante assume como referências de padrão moral e ético sem outros questionamentos.

Então, quais são estas sociedades que não são explicitadas nem apontadas efetivamente como sociedades “não corruptas”?

Naturalmente este tipo de observação não reduz em um milímetro a nossa responsabilidade na construção de uma sociedade íntegra. Não se trata, aqui, de desqualificar o interlocutor. Mas, é preciso estabelecer com clareza em que ambiente esta discussão ocorre, bem como identificar quem são os sujeitos e os seus interesses neste processo. Se não for assim, inadvertidamente, seremos tomados por um sentimento de baixa-estima que, além de nos tornar submissos, inibe as nossas possibilidades de autoafirmação. Um sentimento que desperta em nós um complexo de vira-latas permitindo que as narrativas, como a exibida no talk-show americano se façam com naturalidade e que a partir delas a nossa sociedade seja criticada como se estivéssemos sendo julgados por outra superior, num julgamento onde se trata o óbvio e onde não cabem contestações, o que é uma falácia.

Peço desculpas
Recorrendo a fatos públicos sem me sentir obrigado a povoar este texto com referências e citações - que são obrigatórias nos chatíssimos trabalhos acadêmicos – faço algumas questões que valem ser lembradas neste julgamento moral da sociedade brasileira que alguns se acham no direito de fazer.

Uma sociedade cuja história se fez notoriamente através da exploração de outras terá dote ético suficiente que autorize os seus membros a posarem de magistrados e realizarem juízos sobre a nossa sociedade?

Por exemplo, a França ocupou a Argélia e provocou inúmeros banhos de sangue de sua população. Explorou aquela nação durante mais de 130 anos e só largou o osso em 1962. Mesmo assim, através de uma guerra que deixou uma Argélia em cacos, transformada em fornecedora de mão de obra barata, quase escrava, para o sustento dos habitantes da ex-metrópole. Uma mão de obra que atualmente constitui a maior parte população degradada dos bairros pobres da charmosa capital cultural do mundo.

Estaria a sociedade francesa, ou melhor, os seus membros, em condições de realizar julgamento ético e moral sobre alguma outra sociedade?

Em uma escala histórica, os franceses, ou a França, ou a sociedade francesa (use-se a metonímia como quiser) só largaram o osso da Argélia outro dia. Há menos de sessenta anos. Muitos de nós temos mais idade do que isto.

E os impolutos ingleses que chuparam a Índia até o último pingo do caldinho e que saíram de lá tentando manter o controle da região e deixando a região em um caos geral?

A Inglaterra foi a grande colonizadora da África. Os ingleses incumbiram-se, eles próprios, da tarefa que chegou a ser designada poeticamente de “o fardo do homem branco”, ou seja, livrar as sociedades inferiores do primitivismo. A história está aí para mostrar o resultado.

Alguém precipitadamente argumentará dizendo que é coisa do “passado”. Passado? Mas, este passado foi até ontem, 1947. A minha avó já era avó.

Sem mencionar outras colônias, tratando apenas da Índia, é justo indagar: setenta anos foi tempo suficiente para expurgar essa tenebrosa parte da história do império britânico?

É verdade que quase todos adoramos os Beatles e, adicionalmente, outros como eu adoram os Rolling Stones. Mas, isso não autoriza os súditos de sua majestade a saírem pelo mundo arrotando regras de comportamento e de ética. Torcendo nariz para as “barbáries” das sociedades que não estão sob o manto de dona Elizabeth, cujo reinado resulta de um corta-corta de cabeças que deve transformar o estudo da história do seu país em um verdadeiro conto de terror, especialmente para as crianças nos bancos escolares.

Há muitos exemplos. A colonização portuguesa, a espanhola – esta última durante alguns séculos explorou e exterminou sociedades inteiras nas Américas Central e do Sul. Nem seria necessário garimpá-los. São histórias de impérios e de outras sociedades que foram quase impérios, incluindo sociedades sobre as quais pouco se fala e são apontadas como inquestionáveis.

Na Áustria, uma sociedade que conseguiu pular fora do mea culpa que a sociedade alemã se viu obrigada a fazer, há cerca de dois meses atrás, os seus distintos cidadãos deram 49,3% de votos a um representante político que a mídia internacional insiste em chamar de extrema direita, mas que não passa de um representante do nazismo em sua versão moderna.

O partido da direita perdeu a eleição por uma diferença de menos de 1% dos votos, mas este resultado eleitoral foi tão expressivo que eles conseguiram anular as eleições e a convocação de um novo pleito sob o argumento de fraude,  apavorando a Europa que viveu a recente Brexit.

Cá, entre nós, uma sociedade que vota quase expressivamente em um representante nazista tem crédito ético para fazer juízo sobre a sociedade brasileira? 

E o pessoal do chocolate, vizinhos dos austríacos? Os zeladores do sigilo e da segurança de riquezas acumuladas através de canalhices e explorações sociais praticadas nos diversos confins do planeta. Roube-se  aqui ou acolá! Guarde o produto no sistema bancário legal da Suiça!

Qual o valor ético da sociedade que incorpora essas atividades em sua ordem social?

E, concluindo, qual o valor moral e ético de uma sociedade que se mantém em guerra permanente, guerras de conquistas e de alargamento das fronteiras do seu império, agindo como os romanos faziam há dois mil anos?

Sim, falamos da sociedade americana, a mesma do moço do talk-show ironizando a sociedade brasileira.

Qual o valor moral e ético de uma sociedade onde milhares de seus cidadãos pertencem a organizações armadas, algumas públicas e outras privadas, que se deslocam para países distantes fazendo e promovendo guerras, tornando isso uma prática comercial?

Uma prática tão corriqueira que alguns dos “trabalhadores” desta atividade chegam a adquirir o direito às férias. Voltam às suas casas, passeiam com os seus familiares, fazem churrascos em seus quintais e retornam aos países distantes para bombardear e matar as suas populações, disseminando ódio e violência, sustentando a riqueza americana com a miséria alheia.

Naquela sociedade, a mesma do moço do talk-show, profissionais atiradores de elite, os chamados snipers americanos, são premiados pelo número de mortes que produzem em suas atividades, sejam crianças, mulheres, jovens, velhos, não importa. Vale qualquer o que comando empresarial-militar aponte como alvo. Recebeu a ordem? Atirou? Matou? Ganha pontos!

Qual será a moral e ética de uma sociedade onde um profissional militar, a partir das proximidades de sua residência, pode pilotar drones, objetos lançadores de foguetes que estão a milhares de quilômetros de distância, do outro lado do mundo, sobrevoando, bombardeando e matando famílias inteiras, bairros inteiros, feiras públicas, desde que o comando empresarial-militar tenha determinado a ordem de localizar e atirar?

O tal “piloto”, atividade regular naquela sociedade, cumpre o seu horário de plantão como um profissional qualquer que trabalha em turnos. Findo o expediente ele toma o seu banho, troca o uniforme e retorna para a sua casa. Quem sabe para dar risadas, ao lado da sua família, assistindo um talk-show que ironiza as “barbaridades” da sociedade “subdesenvolvida” do cone sul.

E tudo isto é feito com o conhecimento e a aprovação da sociedade americana. Nada é escondido. Quem envia drones para explodir sociedades civis é o presidente Obama com a anuência e apoio das instâncias políticas e da sociedade americana. Tanto são práticas admitidas que até geram como subproduto uma milionária indústria televisiva e cinematográfica que fatura milhões de dólares e que trata com naturalidade estes fatos, produzindo e vendendo como entretenimento “histórias baseadas em fatos reais”.

Dois exemplos típicos e recentes, romances baseados em situações reais. Veja-se : American sniper – dir. Clint Eastwood (2014) e Good kill – dir. Andrew Niccol (2014). Um dos filmes refere-se a um atirador de elite, um herói americano premiado por matar mais de 250 pessoas. O outro filme trata de um piloto de drones que, a partir de Las Vegas (EUA), dispara mísseis contra alvos, supostos terroristas, no Afeganistão, orientados por um sistema de satélites com tal precisão que quase permite identificar as expressões faciais dos alvos. Detonam casas, grupos de vizinhos que prestam socorro após os bombardeios e também os grupos reunidos para o enterro.

Suas ordens são determinadas por um comando militar que antes identificava os alvos através de informações de espionagem, mas passou a identificá-los por “comportamento típico”, ou seja, se um grupo de pessoas em uma praça ou em uma casa tem um comportamento “tipicamente suspeito”, então, kabum! Bomba neles! Do mesmo modo como a polícia no Rio de Janeiro atua em suas diligências. É preto, pobre, está em grupo? Kabum!

Os filmes tratam de dramas pessoais dos envolvidos, mas as situações são apresentadas como normais, ou seja, são institucionais e sem conflitos com os padrões éticos da sociedade americana. Uma sociedade que acha normal o império estar em guerra permanente. Que acha normal a prática de soldados mercenários, os atiradores de elite e os drones. Uma sociedade que já incluiu em suas práticas sociais cotidianas os solenes enterros militares, as entregas de bandeiras aos familiares de soldados mortos em combate, as idas e vindas de profissionais da guerra que entremeiam suas atividades com períodos de férias etc.

Esta mesma sociedade se atribui o papel de crítica moral de outras. Gargalha diante dos “absurdos” acontecimentos no Brasil.

E sobre a corrupção? Haverá sociedade que mais tenha praticado e se beneficiado da corrupção do que a sociedade americana? Corrupção em escala mundial. Será difícil apontar algum grande caso de corrupção em âmbito internacional que não tenha o envolvimento das empresas americanas suportadas e protegidas por seu governo. Aliás, como recentemente alguém resgatou em programa na TV, os EUA patrocinaram os que foram, talvez, os maiores ladrões da história política, entre eles Chiang Kai-shek (China); Rafael Trujillo (Rep. Dominicana), Fulgêncio Batista (Cuba), Anastásio Somoza (Nicarágua) e segue uma lista que parece não ter fim.

Veja-se, ainda, o caso da indústria de armamentos. Os gastos militares mundiais em 2014 chegaram a quase dois trilhões de dólares. Os EUA detêm 31% do mercado mundial exportador de armas e a transparência nos relatórios sobre a transação mundial de armas militares vêm reduzindo a cada ano (quem quiser mais informações busque em  Stockholm International Peace Research Institute – www. Sipri.org).

Como será que ocorre a negociação de armas pelas empresas americanas (empresas legalmente instituídas pela lei daquele país) com as partes nos diversos conflitos, alguns deles que os próprios americanos promovem?
Haverá concorrências com leilões públicos? Notas fiscais de compra e venda? Nada de subornos? Nada de corrupção? Profissionais idôneos executando transações comerciais isentas e... inquestionáveis? Será a lisura e honestidade nas transações a marca especial deste processo, patrocinado por aquela sociedade?

Enfim, qual o direito deste bando de corruptos cujas ações têm destruído populações inteiras, entre elas, a Palestina, o Líbano, o Iraque a Síria, se arvorar em juiz ou júri da ética e moral da sociedade brasileira?

E ainda existem brasileiros, afogados em sua baixa-estima, que declaram sentir vergonha de serem brasileiros.  Manifestando o seu complexo de vira-latas, olham para essas sociedades como se elas fossem melhores, como se todas não padecessem de uma doença comum que, infelizmente, também envolve a nossa.

Ora! Adianto o meu pedido de desculpas pela exclamação. Mas, vão todos tomar no cú!

Dona Ivone
Estou bem longe de ser um xenófobo, ao contrário, sou ideologicamente internacionalista. Para mim um ser humano não deve ser considerado “diferente” só porque nasceu na outra margem de um rio, do outro lado de um morro ou de uma cerca que determina fronteiras entre países. Não tenho cacoetes chauvinistas e valorizo pouco os patriotismos. Mas, isto não muda o fato que a organização política das pessoas se dá em torno do conceito de nação e a maior parte das sociedades é identificada assim, ainda que grande parte das origens dos nacionalismos seja de natureza econômica, bem mais do que cultural.

É com esta visão que faço esses contrapontos. Eles não são desculpas para mazelas da nossa sociedade. Nada nos redime nem nos liberta da obrigação de nos transformar socialmente em algo melhor. Porém, tendo em vista a história de formação das sociedades, no que se refere a valores éticos e morais, a sociedade brasileira em nada fica a dever às demais, especialmente às ocidentais mais próximas.

Afirmo que qualquer um “não brasileiro” terá muito que aprender com a nossa jovem sociedade. Confusa e ainda em formação, que conta com pouco mais de duzentos anos, muito menos do que seria necessário para a consolidação de uma cultura no sentido antropológico do termo.

Estamos ainda moldando a nossa cara social, mas ela já mostra alguns aspectos interessantes. Ainda carregamos como uma ferida mal tratada, incurada, os vestígios da escravidão. Ressentimentos, preconceitos, valores e discriminações. Nunca soubemos tratá-los, nunca os enfrentamos.

Contudo, cultivamos o mito da integração, e isso é bom. Trata-se de um mito, é verdade,  mas é um mito do bem porque expressa um bom desejo. E se nos empenharmos nesta luta, se fizermos disso um projeto, teremos grandes chances de chegar lá, conseguindo superar o preconceito de origem.

São incontáveis os exemplos de núcleos sociais brasileiros onde participam, sem constrangimentos, elementos de formações culturais e origens distintas, formando uma alternativa de composição tão diversa, variada e indiscriminada quanto as nossas típicas mesas de self-service.

Preconceitos? Temos muitos, mas via de regra não nos identificamos nem nos distinguimos por nossas origens, e como regra geral, entre nós, o outro sempre é bem recebido. De quantas outras sociedades podemos dizer o mesmo? Quantas se organizam com a premissa, mítica ou real, da aceitação do outro?

Somos vizinhos de 10 outros países, numa fronteira de cerca de 15.000 quilômetros sem acumular histórias de agressões e conflitos.  O próprio brasileiro terá dificuldade em avaliar a dimensão e a qualidade deste fato. Muitos nem sequer sabem, mas França e Alemanha que compartilham uma fronteira de cerca de 450 quilômetros, há menos de cento e cinquenta anos estavam engalfinhadas em guerras que produziram dezenas de milhares de mortos.

Nossa sociedade não é melhor nem pior do que as demais porque essa comparação não faz sentido. Ela existe apenas como mecanismo de dominação cultural e política como citei anteriormente. E o nosso papel como seres de uma comunidade internacional é identificar e aproveitar o melhor que cada um de nós conseguiu realizar.

Neste sentido, reafirmo que o cidadão europeu, americano ou de qualquer parte ao pisar no Brasil deveria fazê-lo respeitosamente. “Pisar nesse chão devagarinho” como ensinou a maravilhosa poetisa do samba, D. Yvone Lara.
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