Leituras para distrair
O Zé
era quase uma aberração, uma excentricidade. Não sei classificar. Ele devia resultar de
uma adaptação darwiniana que preservara os processos cerebrais instintivos de
sobrevivência e músculos. Porém, nada indicava que fosse dotado de uma característica humana básica: pensar o momento
seguinte, de ter um propósito ou finalidade. Era uma “coisa” que vivia o
momento presente e pronto. Sobrevivia por acaso e circunstâncias. Alguém sempre
tomou conta dele, e entre os demais ajudantes de caminhão empregados no
depósito de fubá o Zé era uma espécie de mascote. Pequenino, mas um dos mais
fortes. Salvo as funções cerebrais, seu único indício de fragilidade de saúde era a falta da
dentição frontal superior. Empregado antigo, os gerentes do depósito onde
trabalhávamos sempre o protegeram. Enquanto trabalhamos juntos ele morava nas cabines dos caminhões de entregas que ficavam estacionados em um posto de
gasolina durante as noites e os fins de semana. O gerente do depósito cuidava
do seu salário e contingenciava uma parte para que ele tivesse o que comer. Uma
marmita para o almoço e outra para o jantar. Semanalmente ele recebia vales
para ter uns trocados. Seu mundo se limitava às andanças pelo bairro num raio de
alguns quilômetros onde bebia suas cachaças. Era um sujeito amigável, até porque era impossível esticar
qualquer conversa com ele, logo não havia discordância.
Num
dia de entrega no centro de Niterói, o Zé estava impaciente. Na Rua da Praia nunca era
possível cumprir os horários permitidos para entregas que precisavam ser feitas
com caminhão em movimento, quase parando. As calçadas eram entupidas de gente,
e para abrir caminho os carregadores batiam com as mãos nos sacos e pacotes de
fubá e farinha provocando uma nuvem que afastava as pessoas.
Zé
entrou no mercado cujo gerente era conhecido de todos por sua grosseria. Carregando 60 quilos de pacotinhos de farinha ou fubá na
cabeça, Zé perguntou ao gerente onde deveria depositar a mercadoria. O sujeito
cagou para ele que repetiu a pergunta. A moçada que presenciou disse que foram
várias vezes até que o sujeito, sem mesmo olhar para o Zé, respondeu algo do
tipo: joga aí, em qualquer lugar! Zé não titubeou. Arremessou os pacotes no chão
e a mercadoria explodiu espalhada por todos os cantos onde farinha ou fubá em
pó conseguem atingir quando derrubados. Clientes, prateleiras, corredor tudo envolvido
em pó e fumaça de fubá. Uma confusão dos diabos!
Interessante
é que os detalhes dessas ocorrências só chegavam ao depósito na semana seguinte,
através do vendedor que, puto da vida, reclamava com o gerente exigindo
providências em nome dos seus clientes, punições etc.
Zé
foi retirado daquela rota por uns tempos, o bastante para o assunto esfriar. A galera o sacaneava, chamando-o pelo apelido (Barrasco) e diziam: “Barrasco
... os homens querem pegar você!”. Referiam-se implicitamente a uma história que rolava, segundo
a qual, antes de vir para São Gonçalo, o Zé teria acertado a foice em um
capataz que implicou com ele quando ainda era cortador de cana no norte do
Estado. Ele não esticava muito essa conversa. Respondia sempre, referindo-e ao tal capataz, que “aquele” não
perturbaria mais ninguém, e que ele (Zé) estava tranquilo porque os homens sabiam onde procurá-lo se quisessem pegá-lo.
Não sei que fim levou o Zé. Sempre tive curiosidade. Certamente seguiu por aí, vendendo sua força de trabalho que alguém terá comprado e se apropriado do mais valor que produziu. Tomara que tenha encontrado outros protetores em seus caminhos.
Não sei que fim levou o Zé. Sempre tive curiosidade. Certamente seguiu por aí, vendendo sua força de trabalho que alguém terá comprado e se apropriado do mais valor que produziu. Tomara que tenha encontrado outros protetores em seus caminhos.