Leituras para distrair
Daqui
a alguns dias faremos um encontro para conversas na casa de um amigo. O prato
principal será bacalhau, e tendo em vista o hábito
do dono da casa de vaguear durante a pandemia quando deveria sossegar o
rabo em casa, para sacaneá-lo, batizamos o evento de Bacalhau do Andarilho.
A aproximação
do nosso Bacalhau do Andarilho trouxe
algumas lembranças sobre as quais já conversei com alguns, mas que resolvi
registrar, apenas como exercício.
Tomo
como referência a minha família de infância: um casal e três filhos homens,
sustentada por um operário metalúrgico. Assalariado e sem qualificações
especiais além da sua experiência. Só após 10 anos de casamento conseguiu
alugar uma casa para a família. Até então, morava em uma "casa de fundos" , propriedade de parentes próximos, sem
compromisso de aluguel. Essas informações visam apenas formar o contexto sócio
econômico.
Para
aquela família, e naquela época, o bacalhau era acessível, logo não devia ser
tão caro. E não eram imitações. Era comum achar nos armazéns, para usos
diversos, as caixas de armazenamento dos peixes importados, todas com aquelas
palavras estrangeiras estranhas e incompreensíveis.
O
bacalhau, pelo menos em nosso campo de relações, embora frequente nas mesas, não
era idolatrado como alimentação especial. O consumo era maior nas festas
religiosas da semana santa quando era "proibido" o consumo da carne
bovina. Naturalmente estou relatando memórias de uma experiência particular,
não tenho como comprovar e generalizar essas afirmações. São memórias com a
intenção exclusiva de estimular lembranças de cada um e conversas entre nós.
As
carnes bovinas, essas sim, eram a essência da dieta. Carnes de primeira e de
segunda. Ainda hoje não sei identificá-las para exemplificar. O que recordo é
que o consumo dos chamados bifes era um hábito comum, mas nas famílias maiores não
dava pra fazer um bife para cada um. Não haveria carne que bastasse. Muito
menos contemplando as preferências do privilegiado: bem passado, mal passado,
ao ponto, etc. As soluções em quase todas as famílias eram a carne moída e os
ensopadinhos.
A
carne picada em pequenos pedaços rendia. Cozida com batatas, chuchus, cenouras
e similares, compunha o que os paulistas chamam de "mistura", o
complemento proteico do prato. Brilhante solução!
A
carne moída, até então, era assada ou cozida e, após, passada na maquina de
moer (conheço alguém que tem uma coleção delas). Só no final da minha infância,
em Saigon, os açougues se equiparam com máquinas elétricas para vender diretamente
a carne moída crua.
Os
almoços de domingo eram especiais. Galinha e maionese determinavam a
especialidade das refeições. A galinha era um frango criado no quintal ou
comprado vivo no aviário.
Nas
proximidades da nossa casa o principal aviário era de "seu Abdala", e
o atendimento feito por seu filho "Pedrinho" um rapazola mais velho
que eu (ainda criança) e adorado pelas senhoras freguesas locais. Lá
comprávamos eventualmente os frangos vivos ou, frequentemente, ovos em dúzias
inteiras ou meias, cada um deles inspecionados por Pedrinho.
Havia
uma caixa com uma lâmpada incandescente interna e um orifício. Pedrinho
aproximava o ovo (da galinha) do
orifício, examinava o seu interior contra a luz para ver se estava fertilizado.
Estando ok, embalava a quantidade desejada em jornal. Hoje aprendi na internet
que o Pedrinho fazia uma "ovoscopia" e quem quiser pode aprender os
segredos do processo no youtube.
Os
frangos, coitados, tinham um destino triste (não mudou). Passavam alguns dias
ainda vivos no quintal, presos por uma das pernas. Eram executados por minha
mãe num ato de degola. Uma das nossas tarefas era recolher folhas de alfavaca,
que florescia em quantidade nos canteiros do nosso pequeno quintal, e que
servia para o tempero das carnes. Após a degola e o colhimento do sangue, o
frango era banhado em água fervente, depenado e cortado para o cozimento de
suas partes.
Em
nossa casa, pés e cabeça eram dispensados – ninguém consumia canja. Quanto aos
miúdos, eu não tenho lembrança, nem todos eram consumidos. Sob o meu olhar
atual, acho até que era um luxo. Nossa mesa era basicamente de coxas (não havia
o termo sobrecoxas), peito, pescoço e asas. O cú do frango, alguns chamam de "sobre",
não era valorizado em nossa mesa e hábitos.
O
que chamávamos de maionese, e que compunha o prato especial do domingo, era uma
salada de verduras, batatas, chuchus e cenouras cujo molho era feito de gemas
de ovos cozidos amassados com garfo e inundados com azeite (que assim como o
bacalhau não era uma excentricidade culinária). Bem parecido com um salpicão.
Interessante,
para mim, é que a sobremesa não fazia parte do nosso ritual alimentar, embora a
minha mãe fosse uma doceira de mão cheia.
Foram
domingos fartos, felizmente. Em alguns deles o protagonismo principal era o da
carne assada (carne de segunda, especial para assar) e, algumas vezes, o
bacalhau. Só vim a conhecer e desfrutar do "churrasco" já na vida
adulta.
Um
tempo bom. Pobreza sem miséria. Claro que a última existia, mas ainda era distante
de um bairro de operários assalariados e empregados. É possível uma vida digna
e sem luxos.
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