Opinião
Assisti a uma palestra muito legal, cujo tema abordava as
riquezas e possibilidades das “línguas portuguesas” do Brasil, a língua como
patrimônio, instrumento de expressão literária e individual, as questões das
chamadas normas cultas versus a língua viva, além de outros aspectos [1].
Alguém da plateia comentou sobre um fato da atualidade,
quando simplificações são largamente utilizadas nas trocas de mensagens via
internet, e levantou a questão sobre qual seria da influência dessas práticas em
nossa na língua e particularmente na literatura. A pergunta estimulou e
desencadeou outras interessantes observações. Pensando sobre o assunto e como
prática para organizar o pensamento, registrei algumas das minhas reflexões sobre
a questão.
O impacto da internet e dos dispositivos eletrônicos na comunicação
escrita é enorme, e uma questão recorrente é tentar avaliar qual será o efeito
desse impacto sobre uma sociedade que já é carente em sua formação educacional
até em termos de alfabetização. Sem exageros, um contingente grande de pessoas
que teria dificuldade em escrever a palavra “você” com os instrumentos
tradicionais de grafia já troca mensagens através de seus celulares representando
a palavra por “vc” sem maiores considerações.
Para alguns essa questão é irrelevante porque não seria
uma novidade. Argumentam que as transformações nas grafias de “você” para “vc”, típicas das postagens eletrônicas, são equivalentes às
mudanças que ao longo do tempo ocorreram na expressão “vossa mercê”, que se transformou sucessivamente em vossemecê, vosmecê, até o
atual ”você”. Assim, a transformação de “você” para “vc” não
deveria gerar preocupações.
Para mim a equivalência vale como exemplo, mas exige um
pequeno aditamento sob pena de estarmos simplificando o fenômeno. A
transformação de “vossa mercê” em “você” foi uma mudança de linguagem, da
fala, enquanto escrever “vc” no lugar
de “você” é uma mudança da grafia, da
representação simbólica da palavra, logo uma mudança de natureza diferente.
Feito esse reparo, também concordo que a importância maior é se a comunicação
desejada ocorreu sem erros de interpretações decorrentes da grafia utilizada.
Estamos em um período de intensas modificações nas formas
de nossa comunicação. Transformações na linguagem, ou seja, na estrutura do
discurso; transformações na representação simbólica, ou seja, na forma da
escrita, além de uma transformação nos canais de comunicação, ou seja, nos
recursos e instrumentos utilizados para a comunicação.
Estas transformações interagem. A disponibilidade de um
canal de transmissão e recepção que permite a comunicação quase instantânea dispensa
parte dos esforços na construção formal das mensagens. Isso porque a
formalidade é um recurso que busca garantir a compreensão da escrita substituindo
a redundância que é típica da fala. Na medida em que, atualmente, a velocidade
de transmissão é muito alta, quase instantânea, se houver dúvidas podemos simplesmente
repetir as mensagens fazendo as correções necessárias e, consequentemente,
podemos usar códigos de linguagem que sejam mais simples.
Uma característica da fala é a redundância, a repetição
da mensagem até o entendimento. É assim que conversamos em nosso dia a dia. Daí
parecer estranho quando lemos a transcrição de uma conversa. As legendas das
gravações telefônicas, que hoje são tão comuns serem exibidas na TV, são um bom
exemplo. Os diálogos que lemos transcritos na tela da TV – monossílabos,
grunhidos, repetições, gírias, são bem diferentes daqueles que encontramos na
literatura principalmente, mas também no cinema ou no teatro.
Às vezes, tanto na literatura, como no cinema ou teatro, o
autor intencionalmente busca reproduzir um diálogo real, porém na maioria das situações,
diferentemente das conversas cotidianas, os diálogos são sentenças estruturadas
que visam garantir a compreensão da mensagem do autor pelo leitor ou espectador.
Também quando trocamos mensagens escritas, sem o recurso
da redundância que usamos na conversa direta, tradicionalmente o fazemos
construindo mensagens estruturadas, valorizando a sintaxe e a semântica, sempre
buscando garantir o registro correto da informação que será enviada, em
princípio, sem outra oportunidade de correção.
Os dispositivos móveis e a internet impactaram esse processo.
O meu interlocutor está “ali”, à distância de um clique, e não só receberá a
mensagem quase imediatamente como terá a possibilidade de me questionar sobre o
entendimento. E eu poderei repetir, poderei ser redundante, se necessário, com
uma velocidade tal que será como se estivéssemos conversando diretamente.
Então, eu simplifico a forma do discurso (sintaxe) e a descrição do conteúdo
(semântica). Simplifico até a representação simbólica (grafia). “Blz. espero vc
aki kasa. abç”.
Se não bastasse isso, esse mundo novo de recursos também mistura
a mensagem escrita com a iconográfica através da inserção dos “emoticons” que
são modernos ideogramas e que traduzem mensagens inteiras. Carinhas, coraçõezinhos,
mãozinhas, além de outras imagens misturam-se com as letras do alfabeto
representando agrado, desagrado, tristeza, raiva, aplausos etc.
Se formos rigorosos, concluiremos que é um engano dizer
que na internet passamos a escrever como falamos, porque ninguém fala por
ideogramas representando as carinhas dos “emoticons”, embora a mímica faça
parte da nossa comunicação pessoal. Estamos, na realidade, criando uma nova
forma ou um novo conjunto de recursos de comunicação.
Essas transformações não aparecem à toa. Entre outros
fenômenos, ocorre que a mesma funcionalidade de velocidade que está colocada à
nossa disposição exige, em contrapartida, que simplifiquemos as mensagens sob o
risco até de perdermos a oportunidade de transmissão. Muitas vezes chegamos a
receber respostas antes mesmo de terminarmos a transmissão completa da mensagem.
E a literatura, como fica?
Eu não seria capaz de formular uma definição sobre o
significado da expressão “literatura”. Suponho que os dicionários de filosofia,
assim como os textos dos pesquisadores e estudiosos do assunto devem estar
repletos de conceitos e definições. Fico com a minha compreensão, nos limites
da sua estreiteza, que a literatura é uma forma de arte através da qual o homem
registra, reproduz ou idealiza histórias, fatos e emoções em um espaço e tempo
que podem ser conjunturais, históricos, reais ou imaginados.
A arte da literatura se expressa tradicionalmente pela
representação escrita das palavras e pelos mecanismos e recursos colocados à
disposição para essa forma de comunicação. Esse recurso já foi a grafia manual,
já foi a grafia mecânica, e hoje conta com modernos dispositivos eletrônicos com
“touch screen” e outros que chegam até a identificar e completar a palavra que
se deseja escrever.
Só para registro, desde 2010, quase a totalidade dos
estados americanos aboliu a obrigação de ensino da escrita a mão, com a
recomendação para as escolas do foco em outras habilidades, como a digitação de
textos em teclados. Aboliu a obrigação, não aboliu o ensino. Hoje, no Brasil,
já são várias as escolas que priorizam o ensino da escrita a mão e da leitura em
letra de forma, colocando em segunda prioridade o aprendizado da letra cursiva (escrita
manuscrita em que as letras são arredondadas e ligadas umas às outras pelas
pontas).
Sem fazer juízo dessas escolhas, o fato é que elas se
impõem, e a literatura permanecerá, inclusive fazendo uso dessas transformações
em forma e conteúdo, porque possivelmente o homem continuará a recorrer a ela
como instrumento para identificar a si e às suas relações com o mundo que nunca
parou de ser um mundo novo.
A questão mais importante, a meu ver, é se utilizaremos
essas transformações como agentes de integração ou como reforço da exclusão já
existente, na medida em que as possibilidades se apresentam para ambas as
direções. Essa igualdade de possibilidades talvez seja a grande novidade e que
não deveríamos deixar escapar porque não foi sempre assim.
Historicamente os elementos de transformação sempre
estiveram mais à disposição de um projeto de exclusão do que de integração. Certamente
a exclusão resultou de escolhas, mas escolhas que foram facilitadas por uma situação
real de natureza econômica. Hoje já não é tanto assim porque, mesmo
considerando as carências econômicas da nossa sociedade, há possibilidades
reais dos recursos estarem disponíveis em
par de igualdades para ambas as saídas. A necessidade de escolher permanece. #####
...
Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!
Se quiser voar
Pra Lua: a taxa é alta,
Pro Sol: identidade
Mas já pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso meu carimbo dando o sim,
Sim, sim, sim.
O seu Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum!
(Carimbador maluco – Raul Seixas)
[1]
A
palestra foi um evento da 51ª JORNADA REPUBLICANA, realizada
no Museu da República, RJ, em 28/06/2018, organizado por Maria Helena Versiani e Alejandra
Saladino.
O
tema “Falar direito ou direito à fala?” foi desenvolvido com a
participação dos palestrantes: Écio Salles (doutor em Comunicação
pela ECO-UFRJ, escritor, pesquisador e um dos criadores e organizadores da FLUP
– a Festa Literária das Periferias), Francisco César Manhães Monteiro
(doutorando na UFRJ, tradutor e professor, além de escritor e poeta) e Suzana
Vargas (mestre em teoria literária pela UFRJ e pesquisadora da
Fundação Biblioteca Nacional, especialista em leitura e autora de literatura
infantil e juvenil).