quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Chico da Matilde


Leituras para distrair

Há muito tempo nas águas da Guanabara, o dragão do mar reapareceu, na figura de um bravo feiticeiro a quem a história não esqueceu. Conhecido como navegante negro...

Estes são os versos iniciais do samba Mestre Sala dos Mares, uma homenagem que os compositores João Bosco e Aldir Blanc fizeram ao marinheiro João Cândido, um dos líderes da revolta da Chibata, ocorrida em 22 de novembro de 1910. Na voz da intérprete Elis Regina a canção tornou-se um clássico da nossa música popular, e será difícil encontrar alguém que não saiba cantarolar os seus primeiros versos, mesmo buscando na atual geração, quase 40 anos após a primeira gravação do samba.

Um fato que muitos não se dão conta e que passa quase despercebido é que, além de João Cândido, o navegante negro, a canção também homenageia outro importante personagem da nossa história, o jangadeiro cearense Francisco Jose do Nascimento. Ele é o “dragão do mar” que reaparece na figura de João Cândido, conforme a letra da música.

Dragão do Mar foi um novo apelido que Francisco Jose do Nascimento, que até então era “Chico da Matilde”, recebeu de seus companheiros porque, nos idos de 1881 até 1884, liderou os jangadeiros cearenses que durante aqueles anos impediram o embarque e desembarque de escravos nos portos do Ceará.

A proibição de embarque e desembarque dos escravos foi uma decisão dos grupos abolicionistas locais adotada no ano de 1881, e foram os jangadeiros que garantiram o seu cumprimento. A ação dos jangadeiros, que fortaleceu o movimento e os grupos abolicionistas, culminou com a decisão da assembleia legislativa do Ceará, em 25 de março de 1884, de determinar o fim a escravidão naquela província do império, quatro anos antes da Lei Áurea que só foi assinada em 13 de maio de 1888.

O movimento abolicionista no Ceará e o papel fundamental de Francisco Jose do Nascimento estão entre os importantes fatos que infelizmente ainda não são destacados em nossa historiografia oficial e, consequentemente, não fazem parte da nossa memória coletiva. O viés popular do movimento destaca-o como relevante numa história que ainda é marcada por heróis oficiais e institucionais. O movimento abolicionista naquela região contou com uma significativa participação popular, e o movimento dos jangadeiros é um exemplo. Trabalhadores indispensáveis para o embarque e desembarque de qualquer material nos portos da região que deliberaram não mais transportar escravos enfrentando o desagrado das autoridades e influentes negociantes locais e traficantes que lucravam com o comercio negreiro.

Trata-se de uma passagem emocionante que repercutiu em todo o país, inclusive na corte, no Rio de Janeiro, que chegou a receber com festas o jangadeiro Francisco Jose do Nascimento. Felizmente a história foi resgatada e documentada pelo também especial jornalista Edmar Morel (1912 – 1989) em seu livro “Vendaval da Liberdade” (Global Editora – Rio de Janeiro, 1967). Aliás, foi também Morel quem escreveu sobre a rebelião dos marinheiros em 1910 que ficou conhecida como Revolta da Chibata após a publicação do seu livro com este título.

Naturalmente a formação da historiografia oficial tem os seus mecanismos e procedimentos, e existem diversos profissionais e estudiosos que realizam com dedicação os seus estudos e pesquisas resgatando essa histórias “escondidas”. Porém, independentemente disto, é muito importante que se façam mais canções, festas, filmes, novelas, peças teatrais e enredos contando, cantando e resgatando a história popular, seus heróis, lendas e mitos. Daí reaparecerão, quem sabe, outros dragões do mar e navegantes negros.