Opinião
Texto de autoria da jornalista Eliane Brum. Publicado no jornal El País em 01/01/2020. Ver link no final. Reproduzido sem autorização. Sua leitura dispensa justificativas.
Em 2020,
cada um saberá quem é diante de uma realidade que exige coragem para enfrentar
e coragem para perder
Nenhum autoritarismo se instala ou se mantém sem
a cumplicidade da maioria. É o que a história nos ensina. Não haveria nazismo
sem a conivência da maioria dos alemães,
os ditos “cidadãos comuns”, nem a ditadura militar no Brasil teria durado
tanto sem a conivência da maioria dos brasileiros, os ditos “cidadãos de bem”.
O mesmo vale para cada grande tragédia em diferentes realidades. Os déspotas
não são alimentados apenas pelo silêncio estrondoso de muitos, mas também pela
pequena colaboração dos tantos que encontram maneiras de tirar vantagem da
situação. Em tempos de autoritarismo, nenhum silêncio é inocente —e toda
omissão é ação. Esta é a escolha posta para os brasileiros em 2020. Diante do
avanço autoritário liderado pelo antidemocrata de ultradireita Jair Bolsonaro, que está corroendo a justiça,
destruindo a Amazônia, estimulando o assassinato de ativistas e roubando o
futuro das novas gerações, cada um terá que se haver consigo mesmo e escolher
seu caminho. 2020 é o ano em que saberemos quem somos —e quem é cada um.
Há várias ações em curso. E várias mistificações.
Quem viveu a ditadura militar (1964-1985) conhece
bem, guardadas as diferenças, como o roteiro vai se desenhando. No final de
2019, parte da imprensa, da academia e do que se chama de mercado começou a
exaltar os sinais de “melhora econômica”.
A alta da bolsa, a “queda
gradual” do desemprego, a indicação de aumento do PIB em 2020 são elencados
entre os sinais. Ainda que se esperasse mais, afirmam, “os inegáveis avanços do
ponto de vista econômico”, entre eles a reforma da Previdência, “a inflação
comportada” e os juros fechando 2019 “em patamar inimaginável” permitem —e aí
vem uma das expressões favoritas deste seleto grupo de players— um
“otimismo moderado”. Até a pesquisa de uma associação de lojistas divulgou uma
incrível alta de 9,5% nas vendas de Natal, imediatamente contestada por outra
associação de lojistas. É como se a “economia” fosse uma entidade separada da
carne do país, é como se houvesse uma parte que pudesse ser isolada e sobre a
qual se pudesse discorrer usando palavras enfiadas em luvas de cirurgião. É
como se bastasse enluvar jargões técnicos para salvar os donos das mãos de todo
o sangue.
Enquanto esse diálogo empolado e bem-educado do
pessoal da sala de jantar, dos que sempre estão na sala de jantar,
independentemente do governo, é estabelecido, bombas explodiram no prédio da
produtora do programa de humor Porta dos Fundos, policiais matam
como nunca nas periferias de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, ampliando
o genocídio da juventude negra, o antipresidente legaliza o roubo de terras
públicas na Amazônia, ambientalistas são acusados de
crimes que não cometeram, ONGs são invadidas sem nenhuma
justificativa remotamente legítima, adolescentes pobres morrem pisoteados porque
decidiram se divertir num baile funk numa
noite de sábado, indígenas guardiões da floresta e agricultores familiares são
executados, as polícias vão se convertendo em milícias como se isso fosse parte
da normalidade, e são também os policiais e “agentes de segurança” condenados
por crimes os únicos que são libertados no
indulto de Natal. Os sinais estão por toda parte, mas membros
respeitados de instituições da República que deveriam ser os primeiros a
percebê-los —e combatê-los— seguem inflando a boca para assegurar que “a
democracia no Brasil não está ameaçada”.
A qual Brasil se referem estes senhores
bem-educados? De qual país estes luminares do presente falam? Certamente não do
meu nem do de muitos, não o das favelas onde as pessoas se trancam sabendo que
não há porta capaz de barrar a violência da polícia, não este em que os
policiais já exterminam os pretos sem responderem por isso há muito, mas
esperam mais já que o extermínio vai sendo legalizado pelas beiradas. Não este
em que os templos de religiões afro-brasileiras são invadidos e destruídos
apesar de o Estado ser formalmente laico. Não este em que as lideranças da
floresta enxergam o Natal e o Ano-Novo como os piores momentos do ano porque é
o tempo de deixar a família e fugir, pelo menos até que as capengas
instituições voltem do recesso.
Neste país, pessoas da sala de jantar, há muita
gente escondida neste exato momento para poder virar o ano vivo. Não esperam
brindar, desejam apenas não ter o corpo atravessado por uma bala —ou por quatro
na cabeça, como ocorreu com Marielle Franco, num crime não decifrado quase dois anos
depois. Democracia onde? Os escondidos, os ameaçados, os parentes
dos mortos querem saber. Todos nós queremos muito viver neste país em que vocês
enxergaram “inegáveis avanços na economia em 2019” e “instituições que
funcionam”. Não fiquem com o endereço só para vocês.
As pessoas da sala de jantar, porém, só podem
seguir na sala de jantar ditando o que é a realidade porque a maioria assim
permite, omitindo-se ou aproveitando-se das sobras. São as pessoas, no dizer da
historiadora franco-alemã Géraldine Schwarz, “que seguem a corrente”. A questão
é se você, que lê este texto, vai engrossar o rebanho dos que seguem a
corrente.
Não o rebanho de ovelhas. Esta imagem evoca
passividade, engano, uma obediência absolvida pela inocência. Não. Este
rebanho, o dos que agem se omitindo, ou o dos que agem tirando pequenos
proveitos, “porque afinal é assim mesmo e quem sou eu para mudar a realidade”,
é um rebanho de lobos. Porque o ativismo de sua omissão é cúmplice do sangue
das vítimas, estas que tombam, estas que vivem uma vida de terror. É cúmplice
também das ruínas de um país. No caso da Amazônia, é cúmplice das ruínas da
vida da nossa e de muitas espécies no único planeta disponível.
Géraldine Schwarz escreveu um premiado livro
chamado Os amnésicos (Flammarion), infelizmente sem tradução
no Brasil. A historiadora, cuja família foi uma dessas que obteve vantagens no
nazismo, mas se considerava inocente do Holocausto, deu uma excelente entrevista ao jornalista Fernando
Eichenberg, em O Globo. Ela aponta como a adesão aos
déspotas do século 21 mantém a estrutura da adesão aos totalitarismos do século
20:
“No imaginário coletivo, temos tendência a dividir
a sociedade em três categorias históricas no século 20: heróis, vítimas e
carrascos. Na verdade, a maioria da população não se reconhece em nenhuma
delas. É a via mais fácil não se incluir em nenhuma das três categorias, mas
apenas seguir a corrente. Há o magnífico filme baseado no romance de Alberto
Moravia [O conformista, de Bernardo Bertolucci], que mostra muito bem
como o conformista acaba aceitando o que antes era inaceitável.
No ensino da
história, muitas vezes por meio da ficção ou de comemorações, temos uma visão
um pouco distorcida do passado. Se tem a impressão de que a população não teve
nenhum papel nessa história. E teve, muitas vezes, um papel de pilar e
consolidador de ditaduras. É nisso que a democracia tem um papel importante,
pois o povo tem os meios de impedir um golpe e a instalação de um regime
criminoso. Eleger Bolsonaro, por exemplo, para mim, é brincar com o fogo, pois
parece alguém capaz de tudo.”
A historiadora defende a memória como um dos
principais instrumentos de defesa da democracia. “O importante é tomar
consciência de nossa falibilidade e reconhecer que podemos nos transformar
também em um bárbaro”, afirma. "A história não se repete, mas os métodos
de manipulação, sim, porque a psicologia humana não muda. Em um contexto de
crise, em meio a um grupo, o homem terá reações similares. Um dos métodos é
difundir o medo, muitas vezes exagerado em relação à realidade. [...] Trata-se
de confundir a fronteira entre o verdadeiro e o falso, desorientando totalmente
as pessoas. Perde-se as referências, não se sabe mais no que acreditar. E, como
dizia [a filósofa alemã] Hannah Arendt, quem não acredita em mais nada
é manipulável à vontade. Ao ponto de inverter seus valores: o que era bom ontem
já não o é mais hoje. É o que se observa em várias sociedades do mundo. As
pessoas que, hoje, apoiam Jair Bolsonaro, há dez anos provavelmente defendiam
os direitos humanos. Por isso que o ensino do Terceiro Reich é
capital. Na história há muito poucos exemplos de uma sociedade tão civilizada,
moderna, intelectual, que derivou rapidamente para a barbárie. É um ensinamento
universal, que serve de alarme a todo mundo.”
O problema é que países como o Brasil não
produziram a memória da ditadura justamente para absolver os assassinos,
sequestradores e torturadores de Estado. A condição da retomada da democracia
foi o perdão ao imperdoável. Essa política de amnésia resultou, em 2018,
na eleição de um presidente que
tem como herói um torturador e assassino de civis.
Diante de uma população desmemoriada, ao final do primeiro ano do governo do
déspota eleito vimos um roteiro semelhante se repetir, com as necessárias
adaptações a uma época impactada pela Internet. Ainda que a memória no Brasil
seja frágil, porém, ela existe. Não há desculpa para omissão. Nem há qualquer
inocência no suposto conformismo.
O problema, no Brasil e em outros países que vivem
processos políticos semelhantes, é também de memória recente. Esta que está
sendo construída agora, não só nas mentiras disseminadas nas redes sociais por
Bolsonaro e sua familícia, mas também nas narrativas que isolam a
economia da carne que sangra. Como se a evocação do AI-5 por
Paulo Guedes não tivesse nada a ver com suas escolhas econômicas, como se
o Posto Ipiranga fosse radicalmente diferente do dono do
posto. Está em produção uma memória falsa, o que é pior do que desmemória. Pior
do que não lembrar é lembrar de um acontecido que nunca aconteceu.
Entre as tantas perversões da ditadura, uma se
mostrava particularmente enlouquecedora para aqueles que escolheram lutar
contra o regime de opressão. Enquanto homens e mulheres eram vigiados e
perseguidos dia e noite, afastados de seus postos, demitidos de seus empregos,
transformados em párias e criminalizados, enquanto livros, jornais, filmes e
peças de teatro eram censurados, enquanto brasileiros precisavam deixar o país
para salvar a vida ameaçada pelo Estado, enquanto os que ficavam eram
sequestrados, torturados e mortos por agentes do Estado, uma maioria fingia que
nada estava acontecendo. Fingia tanto que acabava acreditando que não eram
gritos de dor e de terror o que ouvia. Era o cidadão de bem que apenas seguia a
corrente, protegendo os próprios interesses e avaliando o que poderia ganhar
com o estado das coisas.
Começamos a testemunhar hoje o mesmo mecanismo
perverso. Com todas as desculpas possíveis, auxiliadas pela polarização que
desloca o perigo para uma falsa oposição. Com todos os erros e os crimes do PT
no poder, o antipetismo não é justificativa aceitável para alguém seguir a
corrente. Não tem mais clima para se fingir de iludido. Basta ter vergonha na
cara para perceber que não se trata mais do PT. Se trata da corrosão do que
ainda resta de democracia no Brasil. Se trata da autorização para roubar
enormes pedaços de floresta, desmatá-los e botá-los no nome dos autores do
crime. Se trata da conversão das forças de segurança em milícias com
autorização para matar. Se trata da criminalização de quem defende os mais
frágeis, usando para isso o aparato do Estado. Se trata de genocídio de negros
—e também de indígenas.
Há muita gente se fingindo de ovelha para lavar as
mãos diante do que vive o Brasil. Mas há também gente angustiada perguntando o
que fazer diante do que já não consegue deixar de ver. A estes, respondo que
ninguém vai dar a resposta. Esta resposta terá que ser criada, coletivamente,
por iniciativa dos que fazem a pergunta. Em cada profissão há o que fazer. Este
é um momento em que precisamos fazer melhor o que sabemos fazer, mas também
precisamos fazer bem o que não sabemos. Apenas o que sabemos já não é
suficiente. O que somos já não é suficiente. Temos que ser melhores do que
somos para enfrentar este tempo em que já não há tempo. E temos que ser juntos,
fazendo laços e tecendo redes entre nós.
Este é o desafio de 2020. O ano novo não está dado.
2020 só será novo se nossa resistência resgatar o presente das mãos dos
déspotas. Esta é a única resolução possível diante do que vivemos e do que
testemunhamos. Cada um de nós precisa se responsabilizar pelo horror do nosso
tempo.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista.
Autora dos livros de não ficção Brasil, construtor de ruínas, Coluna
Prestes - O avesso da lenda, A vida que ninguém vê, O
olho da rua, A menina quebrada e Meus
desacontecimentos, e do romance Uma duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:
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