Opinião
A sociedade brasileira parece que vem se desvelando para
si mesma. Mitos que generalizavam a caricatura de uma sociedade fraterna e sem
preconceitos vêm se desfazendo em decorrência da nossa dinâmica social,
notadamente das nossas experiências sociopolíticas. Vamos revelando a nossa
imagem real, e ela não tem a doçura jovial e angelical da face pública de um
Dorian Gray, ao contrário, vamos descobrindo outra face, escondida e nada
agradável, que retrata as nossas deformidades [1].
Não gosto da
imagem que tenho visto e admito preferir que certos preconceitos sejam
constrangidos por mitos do que aceitá-los e viver num ambiente de apartação.
Contudo, também vejo nessa exposição uma chance de entendermos melhor quem
efetivamente somos e com quais atributos e valores sociais cada um de nós se
identifica. Vejo uma chance de observarmos nossa imagem real e, conforme o
caso, atuarmos sobre os aspectos que nos importam quaisquer que eles sejam.
De fato, estamos vivendo um fenômeno que não é exclusivamente
brasileiro, mas inserido em uma dimensão internacional, e a atual exposição de
núcleos de fascismo e racismo, além de outros preconceitos discriminatórios,
que chegaram a surpreender, foi favorecida pelas mobilizações populares em 2013
e o golpe parlamentar consumado em 2016 que se estabeleceram como marcos.
Porém, em nosso caso, muitos desses sentimentos sempre estiveram embotados e
disfarçados em convenientes e confortáveis posições criadas pela nossa
apartação socioeconômica. As manifestações apenas desmascararam certos atores e
ideais políticos que pareciam estar meticulosamente arrumados dentro de uma
caixa que foi aberta e da qual foi despejado o seu conteúdo sem ter como
arrumá-lo volta. Despejados da caixa, esses ideais e atores políticos perderam
seus constrangimentos e passaram a divulgar e induzir comportamentos e
práticas, estimulando a propaganda de suas ideias com a consequente formação de
grupos de posicionamentos bem mais distintos do que estivemos acostumados em
nossa organização política até aqui.
Para o bem ou para o mal, as questões centrais estão aí.
O golpe e destituição da presidenta, a unção do seu substituto, as práticas do
irrefutável poder e dos aparelhos judiciários, o arrocho da parcela social mais
carente através das reformas trabalhista e previdenciária, a entrega do
patrimônio público aos grupos privados, a corrupção legislativa praticada e
tratada com banalidade, as manifestações racistas, a tentativa de censura
política nas escolas, a criminalização dos movimentos sociais, os antagonismos
às organizações dos trabalhadores, a propaganda para o armamento da população
civil, a impunidade dos torturadores da ditadura e a incorporação de suas
práticas pelos aparelhos policiais, as investidas em favor da censura ideológica,
entre outros.
A dureza da realidade é que apesar dos desencantos não
temos como determinar o fim das monstruosidades apunhalando o quadro como
romanceou Oscar Wilde, até porque morreríamos junto com ele. Ao contrário, o
que precisamos fazer é revelar e tentar redesenhar esse Dorian Gray social,
apesar do nojo e do enjoo que possamos sentir. Assim, não é hora de
acanhamentos nem de exasperações, mas de explicitações e de evidências. Como
cada um de nós quer estar retratado nesse quadro, nessa imagem? É com essa
determinação que precisamos prosseguir.
Quem se aproximar, seja com comentários, opiniões ou
propostas – inclusive com candidaturas - precisa mostrar como tem sido
representado no quadro e como quer estar. Não basta dizer que a imagem é feia.
Isso eu também acho!
Eu quero saber como o fulano se posiciona e tem se
posicionado a propósito de cada um dos temas que me afligem. Quero saber quais
tem sido e quais serão as suas escolhas, e se elas são coerentes com o que ele
propaga. Se o fulano for um candidato, eu quero saber a sua história e se as
suas ações efetivamente contribuirão para a melhoria do quadro. Quero saber o
seu partido e como esse partido tem votado e se posicionado. Quero saber quais
são os seus compromissos explicitamente, incluindo os seus compromissos de
alianças políticas.
O fulano reconhece a importância da mobilização social e o
papel dos trabalhadores como principais agentes sociais das mudanças
necessárias? Está disposto a ir para as ruas apoiando ou participando dessas
mobilizações? Se não for assim, não me apareça com discursos vagos e, muito
menos, pedindo autorização eleitoral para fazer o que achar melhor porque não
terá. Nem me venha com história que deseja melhorar a imagem acrescentando com
um lindo nariz, esteticamente bem desenhado e bem afeiçoado, mas alocado no
alto da testa do Dorian Gray, além dos outros três que já estão por lá. A
criação desse monstro não contará com a minha colaboração.
[1] O Retrato
de Dorian Gray, da autoria de Oscar Wilde, um clássico
da literatura internacional, foi publicado
nos EUA em 1890. O personagem Dorian
Gray envaidecido com a própria beleza após ser retratado em pintura por um amigo,
inconformado com o envelhecimento, vende a sua alma para garantir que o
retrato, em vez dele, envelheça. O desejo é concedido e Dorian entrega-se a uma
vida libertina e
sem qualquer compromisso moral mantendo a aparência bela e jovial enquanto o
seu retrato, mantido escondido, é de um monstro envelhecido e disforme que
registra em sua imagem todos os aspectos corrompem a alma de Dorian Gray.
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