Leituras para distrair
Durante o governo do presidente
Carter, dos EUA, no episódio da invasão da embaixada americana no Irã, nos anos
1979/1980, logo após a deposição do Xá Rezha Pahlevi na revolução que levou o
Aiatolá Khomeini ao poder, seis americanos refugiaram-se na embaixada
canadense, sem o conhecimento dos iranianos que mantiveram cerca de 60 reféns
na embaixada americana invadida.
A Central de Inteligência Americana
– CIA elaborou e realizou um plano de resgate dos seis americanos simulando uma
produção canadense de um filme de ficção científica que seria chamado Argo e
rodado no Irã, um campo de pouso de naves extraterrestres do filme.
Para tal, a CIA montou uma
produtora, elaborou roteiro, script etc. Simulou uma visita de locação das
cenas para filmagens, obteve autorização dos iranianos e um dos seus agentes
fazendo-se de membro da equipe de produção, foi ao Irã levando falsos
documentos para viabilizar a fuga dos abrigados na embaixada canadense como se
estes fossem os demais membros da equipe de filmagem.
A fuga foi um sucesso. Os
canadenses assumiram a responsabilidade pelo ato e omitiram o papel da CIA para
não prejudicar a vida dos reféns mantidos na embaixada americana e que permaneceram
lá por mais de um ano. Anos mais tarde, a
história real veio a público revelando o papel da CIA, dos resgatados etc.
Este é o roteiro do filme – Argo -
ganhador do prêmio Oscar 2013. Um grupo aprisionado em algum lugar hostil aos
EUA, em circunstâncias que tornam quase impossível a sua libertação, é
resgatado por um mocinho ou uma equipe de heróis a partir de uma ação corajosa
e um plano ousado de fuga. Quantas vezes
já se produziu um filme assim? Para mim
é um filmeco, com um roteiro batido e rebatido. Não comento os demais aspectos
que caracterizam as obras de cinema porque estes eu não saberia julgar. Não
entendo da arte, nem valorizo. Os filmes me ganham pelo roteiro e, declaro, não
sou muito exigente. Gosto de filmes de aventuras, sem pretensões, e Argo é filminho
tipo Rambo, sem a tradicional violência explícita do personagem baixinho e
machão de uma série que já deve estar no Rambo XXXVII.
Mas, essa preliminar é apenas para
abordar ou manifestar o meu assombro com o que chamo de “cinema americano” sem
maior rigor na definição. Refiro-me ao produto divulgado internacionalmente,
produzido em estúdios possivelmente hollywoodianos e que mantém a indústria
multimilionária do cinema.
O meu espanto e, até, admiração é a
capacidade do cinema americano produzir aventuras, proezas e heróis também
americanos, a partir de situações onde a participação Estados Unidos foi em
realidade a mais escabrosa e indecente. É muita cara de pau!
Não estou falando de um falseamento
da realidade ou mistificação de fatos. Não tenho a expectativa que uma obra
comercial americana se transforme em um instrumento de resgate histórico ou um
documentário que contradiga ou conteste as referências políticas daquela
sociedade, embora isso possa ocorrer em circunstâncias especiais. Também não me surpreendo com a existência de
filmes que enalteçam a CIA, outros aparelhos ou instituições que caracterizem a
sociedade americana. Refiro-me a um processo ou mecanismo que se transformou em
uma habilidade, quase uma excelência. A capacitação do cinema americano em
apresentar roteiros com um descaramento e desconsideração crítica que parece
ultrapassar a ideologia e que nem mesmo se preocupa em ocultar os fatos.
O próprio filme relata, embora este
não seja o foco, o papel dos EUA nos acontecimento do Irã, no golpe que levou o
Xá ao poder, e na sustentação e apoio à sua ditadura torturadora e corrupta. O
filme não omite o empenho americano em salvar a pele do Xá quando este foi
derrubado. Fala sobre a fortuna em ouro levada pelo Xá quando este fugiu do
Irã. O filme fala sobre a população com história de familiares perseguidos,
torturados e mortos pelo aparelho de estado iraniano apoiado pelos
americanos. Fala sobre o motivo da
revolta, invasão da embaixada e sobre captura de reféns americanos com o
propósito de forçar os EUA a extraditarem o Xá para ser julgado. Enfim, tudo
isto está lá, no filme.
Porém, ainda assim, sinto-me parvo,
imbecil, ao ver que os caras tem o descaramento de contar a história sob uma
ótica e com símbolos que invertem completamente os papéis. Barbas opulentas,
vozes exaltadas, grosseria no trato com as pessoas, sugerem um povo iraniano de
insanos e radicais fanáticos contrastados com americanos dóceis, gentis e, por
uma empatia induzida pelo filme, inocentes.
Os agentes da CIA, por sua vez, são personagens comprometidos em salvar o modo
americano de vida ao mesmo tempo em que “humanamente” tratam os seus problemas
pessoais e familiares. O filme tem até a tradicional cena de euforia do pessoal
que participa nos bastidores da missão, dando suporte e na monitoração dos
acontecimentos. Mostra uma retaguarda tensa e ansiosa com o desfecho que,
quando ocorre, provoca lágrimas, abraços efusivos, cumprimentos e aqueles olhares
cúmplices e comprometidos entre os que estão em pontos distantes dentro do
mesmo ambiente. Caralho! Acho que literalmente todo o mundo já assistiu
filmes com estas cenas.
O que chama a minha atenção, que me
apalerma, não é o fato de serem peças medíocres ou de valorização de uma ação
política com da qual discordo. Fico perplexo com o cinismo desavergonhado e com
o investimento num descaramento cujos resultados positivos para os objetivos
propostos não se pode negar.
Felizmente não precisei aturar o
cheiro insuportável de pipoca nem a visão daquelas pessoas com caras retardadas deslocando-se na sala de cinema e tropeçando ao olhar para cima tentando
identificar os acompanhantes, carregando os enormes baldes de pipoca e copos de
coca – cola cujos restos e respingos garantirão a frequência e aumento da
quantidade das baratas que habitam as salas de projeções (as notícias informam
que a sobrevivência dos bichinhos já está assegurada pela natureza até mesmo no
caso de explosões nucleares).
Assisti ao filme no ambiente higiênico e
confortável da minha casa, numa sessão de TeleCine, e confesso sem
constrangimentos: em vários momentos me vi torcendo pelos mocinhos da CIA,
contra os bandidos da gangue do Aiatolá. Mas, não sinto culpa. Isto já
aconteceu em filmes sobre o resgate de reféns na A. Latina, no Vietnã e até
mais recentes, no Iraque e Afeganistão. No filme não tem problema. Desejo que
eles se fodam na realidade.