quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Cocô de rato


Leituras para distrair


Cocô de rato é um doce. Não faço a menor ideia da sua composição, mas sempre tinha dele nos saquinhos de doces distribuídos nos dias 27 de setembro, dia de Cosme e Damião.  Sei que em alguns lugares e comercialmente  o nome é disfarçado como “pipocas de arroz”. Mas, nos bairros cariocas e nas cidades adjacentes, São Gonçalo entre elas, o nome sempre foi “cocô de rato”. E dia de Cosme e Damião era dia de ir atrás dos saquinhos de doce. Ali tá dando, cocô de rato vai levando! Assim as crianças brincavam quando eu era uma delas. Eu mesmo, que nunca gostei muito de doces, tive dias felizes participando das correrias e das expectativas de ver o que havia dentro dos saquinhos.

Para mim, as lembranças infantis de Cosme e Damião vão além das correrias atrás dos saquinhos de doces. Isso porque, até os 9 anos, eu morava na casa da minha madrinha que, além de distribuir doces, também promovia uma festa, talvez a mais importante do bairro. A festa atendia a uma promessa da minha madrinha, mas outras pessoas se agregavam contribuindo de formas diversas. O resultado era uma noite com uma rua cheia de gente que ganhava os tradicionais saquinhos, sempre com produtos de alta qualidade, e também outros doces e bolos servidos em pratos decorados, além de refrescos e guloseimas diversas, como se fosse um grande aniversário.

Mas, o ponto alto da festa era um sorteio de brinquedos. Um tio, queridíssimo, e minha tia, não menos querida, contribuíam para a festa com uma doação generosíssima de brinquedos. Não eram brinquedos de 1,99. Eram brinquedos de qualidade e belíssimos. Jogos variados, bolas de futebol, bonecas, um verdadeiro sonho, sem mesquinharias. Além da qualidade, havia quantidade. No mínimo 90 unidades que eram distribuídas entre os presentes felizardos que tivessem recebido cartões numerados. Os brinquedos eram sorteados conforme a saída das pedras contidas em um saco de jogo de víspora.

Para nós, eu, meus irmãos e as primas, filhas dos meus tios, o privilégio era a garantia de um cartão para participar da brincadeira. Mas a regra vigente obrigava-nos a participar das expectativas do sorteio e também das frustrações de não sermos contemplados com os brinquedos desejados. Nunca soubemos de fraude para nos privilegiar nos sorteios, nem seria necessário.

Os brinquedos ficavam guardados em um quarto, e dias antes da festa namorávamos aqueles que gostaríamos de ganhar. Na hora do sorteio eles eram retirados do quarto ao acaso e exibidos para excitar a molecada animando a festa. Uma pedra numerada era retirada do saco e o brinquedo entregue a quem tivesse o cartão correspondente. Uma felicidade total! Acho que viver aqueles momentos era a grande recompensa desejada pelo do meu tio falecido prematuramente.

Aquela festa seria impossível nos dias de hoje. Difícil até de imaginar, mas nunca houve confusão além da normal e decorrente da grande quantidade de pessoas. Na verdade era um tempo de menos miséria nos arredores. Havia a possibilidade de curtir alegria e felicidade entre vizinhos e até entre estranhos, além do restrito grupo familiar.  Foi um tempo bom, sem dúvida.

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terça-feira, 25 de setembro de 2018

Essa alma bissexta, essa cara de cão


Opinião
Antes mesmo dos resultados das urnas, a eleição de 2018 já tem pelo menos um ganhador. Pode ser até que ele não se eleja presidente, mas conseguiu projeção nacional e internacional do seu nome, além de ter contribuído generosamente para fazer aflorar um lado lodoso e podre da nossa sociedade. Uma face obscurantista, preconceituosa e discriminatória que até se tornou uma alternativa para voto. Queiramos, ou não, trata-se de um ganho expressivo.


No rastro das manifestações de 2013, que foram manipuladas eficientemente pelos golpistas de 2016, cresceu uma figura nefasta. Um subproduto daqueles eventos que formaram um ambiente adequado para germinar o sentimento fascista que parte da população brasileira está assumindo. Claro que a semente já existia. Ela existe em qualquer sociedade. É humana. A novidade é o seu florescimento. Cresceu como tiririca, erva daninha que para ser eliminada não basta aparar. É preciso revirar a terra e arrancar as suas raízes. Além disso, conviver com os restos da carpina que deverão ficar expostos, durante algum tempo, no mesmo local onde floresceram, secando e impedindo o surgimento de novos brotos.

Enfim, essa será mais uma missão. Não bastassem as nossas lutas contra as desigualdades socioeconômicas, teremos ainda que combater e promover o esquecimento dessa figurinha escrota, nazistinha de meia tijela, mas que acumulou potencial para levar nosso país a um abismo sociopolítico. É quase inacreditável que, em vésperas da Constituição 88 completar 30 anos, uma passeata de campanha presidencial tenha desfilado na cidade de Recife, no último domingo, 23/09/2018, com o seguinte refrão “... pras feministas ração na tigela, as minas de direita são as top mais belas, enquanto as de esquerda tem mais pelo que cadela. Uma passeata com muitas participantes mulheres. Mais impressionante, ainda, é que a adesão feminina ao candidato tem aumentado ao mesmo tempo em que aumenta a sua rejeição.

Avalio que a sociedade brasileira, apesar de criança em sua formação cultural, já tenha os anticorpos políticos para reagir e dar conta dessa contaminação por valores que se sustentam, antes de tudo, por ignorância. As mobilizações de reação têm sido fortes e numerosas nos ambientes onde os recursos de comunicação são de fácil acesso, tipicamente ambientes de classe média. Mas, parece que tem sido justamente nesses ambientes que a praga se espalha com mais facilidade. De qualquer forma, iremos à luta. Tiririca é assim mesmo, não é fácil extirpar depois que floresce.

[*] Trecho do rock “Pessoa Nefasta” – Gilberto Gil  ( ... Tu, pessoa nefasta/Vê se afasta teu mal/Teu astral que se arrasta tão baixo no chão/Tu, pessoa nefasta/Tens a aura da besta/Essa alma bissexta, essa cara de cão...) 


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quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Múmias incômodas


Leituras para distrair

Há mais de 30 anos, viajando de Porto Velho para Vilhena, no estado de Rondônia, almoçávamos em um galpão que era o principal restaurante de uma das cidades do percurso. O som ambiente era o serviço de alto falantes da cidade que noticiava uma polêmica local. A prefeitura insistia em remover um antigo cemitério para construir uma estrada necessária para a cidade, mas encontrava objeções de parte da polução que considerava importante preservar o local de sepultamento dos primeiros colonizadores da região.

Não sei qual foi o resultado da polêmica, mas ela marcou minha memória. Logo que ouvi a notícia fiquei a pensar se naquele mundão de selva amazônica não haveria uma alternativa de percurso para a tal estrada que preservasse o cemitério. Também fiquei imaginando que a população, migrantes de todas as regiões do país, já enfrentava batalhas duríssimas tentando ganhar suas vidas desbravando aquele ambiente inóspito de selva e de malária. Por que deveriam se preocupar se algumas caveiras estariam enterradas aqui ou acolá?

Repetidas vezes conversei sobre essa história entre amigos, como exemplo, em pequena escala, de escolhas que determinam o caráter de uma sociedade em formação. Conversamos sobre a importância da objeção às intenções do prefeito, que até poderia ser uma boa solução de engenharia. Afinal, uma sociedade que não valorizasse a sua história e nem preservasse os símbolos que a representavam, dificilmente teria algum compromisso com o seu próprio futuro. Como poderiam pensar em algo como preservação ambiental e cuidados no trato com a  floresta sem algum valor cultural que sustentasse esses compromissos?

Lembrei essa história em meio à profusão de pensamentos e emoções que modularam o sentimento de enorme raiva que brotou em muitos de nós com a tragédia do museu da Quinta da Boa Vista. Indignação, tristeza, impotência, vergonha, dor, constrangimento, revolta, uma lista longa que me faz pensar novamente sobre o compromisso de uma sociedade com o seu próprio futuro, na medida em que ela sequer valoriza a sua história.

Uma morte anunciada – como estão anunciadas outras! Exclamamos, quase resignados. Nem deveria surpreender, afinal, o Hospital do Fundão, assim como o Museu da Quinta, também vinculado à UFRJ, guardadas as peculiaridades dos vínculos administrativos, também têm sido abandonado à sua sorte, tal e qual a própria universidade. Não cuidaram do hospital que guarda seres vivos, por que cargas cuidariam de um depósito de múmias e fósseis?

O fato é que a nossa sociedade ainda vive a tentativa de se formar em uma massa cultural com liga consistente e suficiente para enfrentarmos esse tipo de situação. A história não nos fez coalhar, como leite, formando blocos culturais distintos. Talvez isso até acelerasse processos de consolidação, mas também seria uma divisão em sociedades distintas, o que não parece ser a nossa vocação. Queiramos, ou não, ainda somos uma farofa de hábitos, práticas e costumes, mas, ainda , sem liga cultural, por mais que em nosso imaginário exista a figura de um ser “brasileiro”. Imaginar isso é bom, mas ainda é um desejo, e precisaremos de mais gerações para vê-lo concretizado. Nessas circunstâncias, a questão que sobressai é se teremos tempo de chegar até lá ou se nos destruiremos antes disso, fazendo nossas cagadas.

Vilhena, a principal cidade ao sul de Rondônia, é uma espécie de portal da Amazônia para quem chega do sul do país, através do Mato Grosso. Identificar isso num mapa é interessante. Eu e outros colegas aprendemos em conversas com caminhoneiros que eles sabiam que estavam entrando na Amazônia quando avistavam as antenas da Embratel de Vilhena. As antenas em questão, eram antenas especiais para a cobertura de distâncias enormes, centenas de quilômetros, usando uma técnica chamada de tropodifusão. Poucas pessoas tiveram a oportunidade de ver de perto antenas daquele tipo, porque elas foram utilizadas especialmente para as transmissões na região, então impenetrável, da floresta amazônica. Elas eram lindas e gigantescas. E, conforme os caminhoneiros, funcionavam como faróis cuja visão anunciava a chegada à região da floresta. O advento das comunicações por satélite permitiu a substituição da tropodifusão, que tinha restrições na qualidade das transmissões e, consequentemente, a desativação das antenas.

Alguns de nós achávamos que as antenas poderiam ter sido preservadas nos locais, mesmo sem uso. Haveria um gasto adicional para a sua manutenção mecânica, mas que se justificava pelo valor simbólico que tinham, afinal, elas e a própria Embratel, ainda estatal, também eram pioneiras na Amazônia. 

As nossas tentativas foram em vão e nossas propostas classificadas como românticas e infantis. Até onde eu soube, elas foram desmontadas e vendidas como ferro-velho. As estações e terrenos, que sempre foram bem cuidados, foram abandonadas e favelizadas. Poderiam ter sido resguardadas como um museu. Mas, quem sabe, talvez também fossem perdidas em algum incêndio.
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