quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O trem não pode atropelar o marinheiro.

Leituras para distrair

Uma das estações do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), a da Praça Quinze, centro do Rio de Janeiro, está sendo instalada bem ao lado do monumento ao João Cândido – o “almirante negro”, meu herói preferido. Outro dia passei pelo canteiro de obras e fui verificar o monumento. Estava desconfiado, incomodado, achando que iriam retirá-lo de lá, e ainda não estou certo se isso não irá acontecer.

O monumento está no local, mas o seu pedestal foi danificado  em diversos pontos e, também, a mão da estátua está danificada  e precisando de reparos (imagens abaixo). Não posso afirmar, mas acho que os danos decorreram das obras de revitalização do local. Certamente poderiam ter sido evitados, mas considerando as precariedades das nossas obras públicas não achei um absurdo, desde que, naturalmente, recuperem o estrago. As obras ainda não terminaram, e se o monumento não for recuperado, mesmo sem grande chance de sucesso, pretendo tentar identificar o órgão responsável e solicitar a recuperação. Manter a estátua do João Cândido conservada e, ali, onde ela está, é importante.

O monumento foi instalado num cantinho sem muito charme, quase espremido entre a antiga estação de aerobarcos e o prédio da Capitania dos Portos. Porém, apesar de escondido, acho que ali é um bom lugar, naquele cantinho da baía ele tem significado especial, pertinho das “pedras pintadas do cais”. Ocorre que as obras recentes transformaram o cantinho em um ponto nobre, e não surpreenderá se algum gaiato implicar com a presença do monumento naquele local. Especialmente nestes tempos de exacerbação de preconceitos, dado que foi o governo Lula quem anistiou o João Cândido em 2008, fato registrado no monumento.

Mais um novembro chegou e, com ele, as homenagens  a Zumbi dos Palmares pela passagem do dia 20, dia consciência negra. Mas, também a semana de 22 a 26 de novembro está associada a um dos mais importantes e significativos eventos da nossa história política, a Revolta da Chibata. Seria bom que a história e luta dos marinheiros, mais do que a mitificação da figura do João Cândido, fosse expressivamente resgatada nas comemorações e celebrações de novembro.

Aos eventuais leitores, como parte dessa celebração, convido para uma leitura (re-) de duas postagens que fiz nesse blog, ambas em 2013:  Um tal João Cândido Felisberto  (novembro 2013)  e  Chico da Matilde  (dezembro 2013). Tomara que gostem. 



Imagem publicada sem autorização – copiada de: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjcc_10UAmmtPrAXcVNfoGD-LbmMQEQFnM_j7W2yZ8FIpKeMoBbrLpEEh20-5XurS9Ynpg1OHeITcPBhQCJ6q1e1zaqdnuYuvmI93QJq6zB0OMWtzXPIRLoThdTxxGyWtwk8DvC3VGw5PrM/s640/jo%25C3%25A3o+candido+1.jpg






Imagem publicada sem autorização – copiada de: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/f/f3/Chibata.jpg/800px-Chibata.jpg

domingo, 20 de novembro de 2016

Take this Waltz


Leituras para distrair

Desculpem-me a ignorância artística, mas eu nunca soube praticamente nada sobre o Leonard Cohen, mesmo depois que passei a olhar com maior cuidado esses assuntos para poder conversá-los com amigos. O fato é que o cara morreu em 07 de novembro, último, e todos os jornais anunciaram fazendo resenhas etc. Acho que por aqui a morte dele foi mais anunciada do que sua obra.

A minha ignorância só não era total porque em 08 de abril de 1988 eu ganhei uma querida lembrança, um vinil gravado em 1986, celebrando 50 anos da morte de Garcia Lorca. Este sim, um artista de quem procurei saber muito. O vinil tem uma apresentação do Ian Gibson, autor da biografia do Lorca, publicada pela Editora Globo, que também recebi de presente em 1990. 

O título do LP é "Poets in New York" repetindo o título de um dos livros do poeta publicado pós-morte. São 14 artistas internacionais interpretando, em seus idiomas natais, canções que são poemas musicados do Lorca ou com letras baseadas em seus poemas. Para mim é uma joia, mas a minha opinião é suspeita, não é isenta.

Entre os artistas que participaram da gravação estão o Chico Buarque e o Fagner. Eles cantam uma música chamada A Aurora, um poema do Lorca traduzido pelo Ferreira Gullar.

No mesmo disco (justificativa dessas notas) há uma gravação do Leonard Cohen interpretando Take this Waltz uma letra que ele mesmo compôs/traduziu a partir do poema de Lorca. Sempre foi a faixa que mais gostei e fiquei impressionado especialmente com o grave da sua voz.

Nesses tempos de web, assumindo o que dizia querido amigo: “levem-me tudo, menos o youtube”, eu busquei as gravações do Chico/Fagner e do Cohen.

Da capa do vinil eu fiz um quadro que está na minha sala. São poucos os meus pertences dos quais eu goste tanto. Passo por ele todos os dias. Lembro do Lorca, do Chico do Cohen, mas especialmente de quem me presenteou. E lembrando tantos outros amigos queridos eu compartilho.










sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Não confundir ingênuos com traidores

Leituras para distrair

Um grande amigo mandou-me de presente um texto para leitura. Partilhamos as mesmas aspirações sobre as questões sociais, estivemos juntos em várias empreitadas defendendo nossas ideias, desenvolvemos uma forte amizade pessoal e, naturalmente, aprendemos a trocar impressões e reflexões, especialmente quando o horizonte fica com um aspecto de tempo ruim, quando é difícil  identificar o melhor caminho a seguir. 

O texto chegou em boa hora. O autor é um poeta argentino chamado Alejandro Pablo Rubino, pelo menos até onde pesquisei. Digo isso porque este texto também foi divulgado como da autoria de outro poeta argentino, mais conhecido, chamado Paco Urondo. Acho que é uma dessas confusões típicas da internet.
Recebi o texto em português, mas sem o registro do tradutor. Achei uma boa tradução, embora eu mesmo tenha trocado uma ou outra palavra caracterizando a minha versão. Mas, o texto original está em seguida para quem se interessar.
Vale o conteúdo. Gostei muito. O título é “Instruções para enganar o mau tempo” . O autor usou a expressão “capear el mal tiempo”. O termo espanhol “capear” se refere ao movimento que os toureiros fazem com a capa para ludibriar, enganar ou distrair os touros em suas pelejas. Acho que diversos companheiros com quem tenho trocado conversas também gostarão de ler. Então resolvi registrá-lo no blog.

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Instruções para enganar o mau tempo
Autor: Alejandro Pablo Robino

Em primeiro lugar, não se desespere e em caso de agitação não siga as regras que o furacão quererá lhe impor.
Refugie-se em casa e feche as trancas quando todos os seus estiverem a salvo. 
Compartilhe o mate e a conversa com os companheiros, os beijos furtivos e as noites clandestinas com quem lhe assegure ternura.
Não deixe que a estupidez se imponha. 
Defenda-se. 
Contra a estética, ética. 
Esteja sempre atento.
Não lhes bastará empobrecê-lo, e quererão subjugá-lo com sua própria tristeza.
Ria ostensivamente.
Tire sarro: a direita é mal fudida.
Será imprescindível jantar juntos a cada dia até que a tormenta passe.
São coisas simples, mas nem por isso menos eficazes.
Ao seu lado diga bom dia, por favor e obrigado.
E tomar no cu quando o solicitem de cima.
Atire com o que tiver, mas nunca sozinho.
Eles sabem como emboscá-lo na solidão desprevenida de uma tarde.
Lembre que os artistas serão sempre nossos. E o esquecimento será feroz com o bando de impostores que os acompanha. 
Tudo vai ficar bem se você me ouvir.
Sobreviveremos novamente, estamos maduros. 
Cuidemos das crianças que eles quererão amoldar.
Só é preciso se munir bem e não amesquinhar amabilidades.
Devemos ter à mão os poemas indispensáveis, o vinho tinto e o violão.
Sorrir aos nossos pais como vacina contra a angústia diária.
Ser piedosos com os amigos.
Não confundir os ingênuos com os traidores. E, mesmo com estes, ter o perdão fácil quando voltarem com as ilusões acabadas.
Aqui ninguém sobra.
E, isto sim, ser perseverantes e tenazes, escrever religiosamente todos os dias, todas as tardes, todas as noites.
Ainda sustentados em teimosias se a fé desmoronar.
Nisso, não haverá trégua para ninguém.
A poesia dói nesses filhos da puta.

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Instrucciones para capear el mal tiempo
Autor: Alejandro Pablo Robino

En primer lugar, no se desespere y en caso de zafarrancho 
no siga las reglas que el huracán querrá imponerle. Refúgiese en la casa 
y asegure los postigos una vez que todos los suyos estén a salvo.
Comparta el mate y la charla con los compañeros, 
los besos furtivos y las noches clandestinas, con quien le asegure ternura.
No deje que la estupidez se imponga. Defiéndase. A la estética, ética.
Esté siempre atento. No les bastará empobrecerlo 
y lo querrán someter con su propia tristeza. 
Ríase estentóreamente. Mófese: la derecha está mal cogida.
Será imprescindible cenar juntos cada día hasta que la tormenta pase.
Son cosas simples, sencillas, pero no por ello, menos eficaces.
Diga hacia el costado buen día, por favor y gracias. Y la concha de tu madre
cuando lo soliciten desde arriba. Tírele con lo que tenga, pero nunca solo.
Ellos saben cómo emboscarlo en la desprevenida soledad de una tarde.
Recuerde que los artistas serán siempre nuestros. Y el olvido 
será feroz con la comparsa de impostores que los acompaña.
Todo va a estar bien si me hace caso. Sobreviviremos nuevamente, 
estamos curtidos. Cuidemos a los pibes que querrán podarlos.
Solo es menester bien pertrecharse y no escatimarnos amabilidades.
Deberemos dejar a mano los poemas indispensables, el vino tinto y la guitarra.
Sonreírles a nuestros viejos como vacuna contra la angustia diaria.
Ser piadosos con los amigos. No confundir a los ingenuos con los traidores.
Y aún con estos, tener el perdón fácil para cuando vuelvan con las ilusiones forreadas.
Aquí nadie sobra. Y eso sí, ser perseverantes y tenaces, escribir religiosamente 
todos los días, todas las tardes, todas las noches. Aún sostenidos en terquedades
si la fe se desmorona. En eso, no habrá tregua para nadie.
La poesía les duele a estos hijos de puta.

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terça-feira, 13 de setembro de 2016

Um golpe gonçalense

Leituras para distrair


A data 13/09/2016 estará associada ao golpe de 2016  e ao papel do Eduardo Cunha naquele processo. O ex-deputado foi o autor de uma chantagem que foi rejeitada e quem, em retaliação, aceitou o requerimento do impeachment mesmo com a consciência que não havia crime que o justificasse. E no dia 12 de setembro de 2016 ele próprio teve o seu mandato cassado sendo dispensado por seus pares. Um deputado comentou, durante a sessão de votação, que fez questão de contar e contabilizou apenas cinco apertos de mãos recebido pelo até então todo poderoso deputado chantagista e golpista.

Mas, não temos o controle sobre a história, ela significará aquilo que efetivamente valorizarmos. No dia 13 de setembro celebro o aniversário de dois amigos e, coincidentemente, também há um golpe para lembrar. Bem mais interessante que o de 2016 e que certamente honra a data, porque o dia 13 de setembro já é celebrado como o Dia Nacional da Cachaça. Data proposta pelo Instituto Brasileiro da Cachaça - IBRAC, desde 2009, e que deverá ser promulgada como lei ( PL 5428/2009) através de projeto assinado  por um deputado, também golpista, do PMDB de Santa Catarina, mas que contabilizará este ato em seu favor.

A data foi escolhida em função da Revolta  da Cachaça ocorrida em 1660 no Rio de Janeiro. A revolta também foi um golpe, quando fazendeiros, fabricantes de cachaça (uma espécie de Fiesp da época), revoltaram-se contra a cobrança de impostos e até a proibição da comercialização da “marvada” determinada pela coroa portuguesa que queria impor o consumo da bagaceira no Brasil. Naquela época não havia um Cunha.

Os golpistas se articularam na minha terra, em São Gonçalo que, então, era a Freguesia de São Gonçalo de Amarante e que incluía os atuais municípios de Niterói e Magé. Em novembro de 1660 os golpistas atravessaram a baía de Guanabara e tomaram o governo na marra, expulsando o governador interino – o o titular havia viajado para São Paulo - e chegando a governar a cidade do Rio de Janeiro por cerca de cinco meses. Mais tarde os golpistas se fuderam (como eu disse, não era a Fiesp), e em 13 de setembro do ano seguinte, 1661, a  ordem foi consolidada com um decreto real restabelecendo e oficializando o comércio da pinga. Uma história bem interessante e importante, mas que poucos conhecem.

Para quem se interessar, a Revolta da Cachaça é tida como um fato histórico importante e o Google apontará bibliografias. Destaco uma intitulada “ENTRE A SOMBRA E O SOL – A REVOLTA DA CACHAÇA, A FREGUESIA DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE E A CRISE POLÍTICA FLUMINENSE (RIO DE JANEIRO, 1640 – 1667) – Dissertação de Mestrado aprovada pelo Programa de Pós-graduação em História da UFF – 2003, de Antonio Filipe Pereira Caetano
O meu destaque tem motivação bairrista. Trata-se de um trabalho dedicado a analisar o papel da Freguesia de São Gonçalo na arquitetura e desenvolvimento da revolta da Cachaça em:

No mais, é celebrar. Como diz o pessoal da Confraria do Copo Furado: Unidos beberemos! Sozinhos também!

domingo, 17 de julho de 2016

Um talk-show constrangedor

Opinião

Assisti à exibição em vídeo de um talk-show da TV americana cuja abertura é um monólogo do apresentador produzindo risadas da claque enquanto narra situações caricatas sobre o Brasil e as Olimpíadas 2016.  Os editores fizeram uma coletânea de fatos reais sobre as mazelas do nosso país, incluindo a crise política recente, as idas e vindas do projeto das olimpíadas, a nossa pobreza, a degradação ambiental dos nossos espaços naturais, as declarações conflitantes e controversas das autoridades e personagens públicas, manifestações de policiais em aeroportos, fechamento de postos de saúde, as ameaças do o zika vírus, enfim, tinha de tudo. E o fio condutor foi, explicitamente, ou não, a questão da corrupção em nossa sociedade.

A narrativa do script era ilustrada com imagens ao fundo exibindo manchetes e noticiários de jornais justificando cada assunto tratado. Nada inventado, no máximo alguns fatos fora de contexto. Uma narrativa irônica e caricata interrompida apenas pelas observações e caretas sarcásticas do apresentador e pelas gargalhadas da claque. Uma apresentação para fazer qualquer brasileiro (ou muitos, penso eu) sentir-se embaraçado e constrangido.

 A gravação deve estar circulando por aí, pelo mundo, e nada mudará aqueles fatos. Se houver algo que se possa fazer em contraposição àquelas situações específicas, será trabalhar para transformar aquelas realidades apresentadas sobre o nosso país.

Contudo, ao mesmo tempo em que faço essas observações, aproveito a oportunidade para agregar outras que são contrapontos cabíveis e de âmbito geral, mas que nem sempre são considerados quando nos deparamos com tais situações que acabam nos deixando intimidados perante nossos críticos interlocutores. Vejamos!

Juízos e juízes.
Quando se diz – o Brasil é alegre ou o Brasil é corrupto – faz-se uma substituição de termos para que a mensagem fique mais expressiva. Usa-se a palavra Brasil em vez de se referir aos brasileiros ou à sociedade brasileira. Trata-se de uma metonímia. Um artifício de linguagem que valoriza o sujeito ao identificá-lo por um simbólico “Brasil”, mas que, ao mesmo tempo, também permite que a relação do predicado com o sujeito real sofra uma espécie disfarce que só é revelado conforme o nosso interesse de identificação. Assim, quando o atributo é a alegria e a cordialidade identificamo-nos com a sociedade brasileira. Cada um de nós se sente representado. Formamos um povo alegre, cordial, etc. Mas, quando se trata da corrupção ninguém se sente identificado com o atributo, afinal, ninguém se inclui como corrupto. Corrupto é o tal do “Brasil”.

Contudo, este jogo de esconde-esconde não elimina a intenção original. Sempre que se afirma a característica corrupta do Brasil, tal afirmação refere-se, rigorosamente, à sociedade brasileira, classificando-a como corrupta, particularmente se comparada com as sociedades europeias e a americana. E pelo fato de estar escondida pela metonímia, tal afirmação não é questionada. Ela vai sendo repetida sem críticas nem objeções, aqui e acolá, por muitos brasileiros de idades diversas, alienados em relação ao real significado dessas classificações e possuídos por um discurso que reflete uma dominação política e cultural.

Mas, quem saberia afirmar qual o padrão absoluto de medida do nível de integridade que uma sociedade deveria atender para ser, ou não, enquadrada como corrupta?

É obvio que não há um padrão absoluto, e se tal padrão não existe, então, obrigatoriamente, estas afirmações devem decorrer de experiências e comparações com outras sociedades arbitrariamente afirmadas como íntegras e que o discurso dominante assume como referências de padrão moral e ético sem outros questionamentos.

Então, quais são estas sociedades que não são explicitadas nem apontadas efetivamente como sociedades “não corruptas”?

Naturalmente este tipo de observação não reduz em um milímetro a nossa responsabilidade na construção de uma sociedade íntegra. Não se trata, aqui, de desqualificar o interlocutor. Mas, é preciso estabelecer com clareza em que ambiente esta discussão ocorre, bem como identificar quem são os sujeitos e os seus interesses neste processo. Se não for assim, inadvertidamente, seremos tomados por um sentimento de baixa-estima que, além de nos tornar submissos, inibe as nossas possibilidades de autoafirmação. Um sentimento que desperta em nós um complexo de vira-latas permitindo que as narrativas, como a exibida no talk-show americano se façam com naturalidade e que a partir delas a nossa sociedade seja criticada como se estivéssemos sendo julgados por outra superior, num julgamento onde se trata o óbvio e onde não cabem contestações, o que é uma falácia.

Peço desculpas
Recorrendo a fatos públicos sem me sentir obrigado a povoar este texto com referências e citações - que são obrigatórias nos chatíssimos trabalhos acadêmicos – faço algumas questões que valem ser lembradas neste julgamento moral da sociedade brasileira que alguns se acham no direito de fazer.

Uma sociedade cuja história se fez notoriamente através da exploração de outras terá dote ético suficiente que autorize os seus membros a posarem de magistrados e realizarem juízos sobre a nossa sociedade?

Por exemplo, a França ocupou a Argélia e provocou inúmeros banhos de sangue de sua população. Explorou aquela nação durante mais de 130 anos e só largou o osso em 1962. Mesmo assim, através de uma guerra que deixou uma Argélia em cacos, transformada em fornecedora de mão de obra barata, quase escrava, para o sustento dos habitantes da ex-metrópole. Uma mão de obra que atualmente constitui a maior parte população degradada dos bairros pobres da charmosa capital cultural do mundo.

Estaria a sociedade francesa, ou melhor, os seus membros, em condições de realizar julgamento ético e moral sobre alguma outra sociedade?

Em uma escala histórica, os franceses, ou a França, ou a sociedade francesa (use-se a metonímia como quiser) só largaram o osso da Argélia outro dia. Há menos de sessenta anos. Muitos de nós temos mais idade do que isto.

E os impolutos ingleses que chuparam a Índia até o último pingo do caldinho e que saíram de lá tentando manter o controle da região e deixando a região em um caos geral?

A Inglaterra foi a grande colonizadora da África. Os ingleses incumbiram-se, eles próprios, da tarefa que chegou a ser designada poeticamente de “o fardo do homem branco”, ou seja, livrar as sociedades inferiores do primitivismo. A história está aí para mostrar o resultado.

Alguém precipitadamente argumentará dizendo que é coisa do “passado”. Passado? Mas, este passado foi até ontem, 1947. A minha avó já era avó.

Sem mencionar outras colônias, tratando apenas da Índia, é justo indagar: setenta anos foi tempo suficiente para expurgar essa tenebrosa parte da história do império britânico?

É verdade que quase todos adoramos os Beatles e, adicionalmente, outros como eu adoram os Rolling Stones. Mas, isso não autoriza os súditos de sua majestade a saírem pelo mundo arrotando regras de comportamento e de ética. Torcendo nariz para as “barbáries” das sociedades que não estão sob o manto de dona Elizabeth, cujo reinado resulta de um corta-corta de cabeças que deve transformar o estudo da história do seu país em um verdadeiro conto de terror, especialmente para as crianças nos bancos escolares.

Há muitos exemplos. A colonização portuguesa, a espanhola – esta última durante alguns séculos explorou e exterminou sociedades inteiras nas Américas Central e do Sul. Nem seria necessário garimpá-los. São histórias de impérios e de outras sociedades que foram quase impérios, incluindo sociedades sobre as quais pouco se fala e são apontadas como inquestionáveis.

Na Áustria, uma sociedade que conseguiu pular fora do mea culpa que a sociedade alemã se viu obrigada a fazer, há cerca de dois meses atrás, os seus distintos cidadãos deram 49,3% de votos a um representante político que a mídia internacional insiste em chamar de extrema direita, mas que não passa de um representante do nazismo em sua versão moderna.

O partido da direita perdeu a eleição por uma diferença de menos de 1% dos votos, mas este resultado eleitoral foi tão expressivo que eles conseguiram anular as eleições e a convocação de um novo pleito sob o argumento de fraude,  apavorando a Europa que viveu a recente Brexit.

Cá, entre nós, uma sociedade que vota quase expressivamente em um representante nazista tem crédito ético para fazer juízo sobre a sociedade brasileira? 

E o pessoal do chocolate, vizinhos dos austríacos? Os zeladores do sigilo e da segurança de riquezas acumuladas através de canalhices e explorações sociais praticadas nos diversos confins do planeta. Roube-se  aqui ou acolá! Guarde o produto no sistema bancário legal da Suiça!

Qual o valor ético da sociedade que incorpora essas atividades em sua ordem social?

E, concluindo, qual o valor moral e ético de uma sociedade que se mantém em guerra permanente, guerras de conquistas e de alargamento das fronteiras do seu império, agindo como os romanos faziam há dois mil anos?

Sim, falamos da sociedade americana, a mesma do moço do talk-show ironizando a sociedade brasileira.

Qual o valor moral e ético de uma sociedade onde milhares de seus cidadãos pertencem a organizações armadas, algumas públicas e outras privadas, que se deslocam para países distantes fazendo e promovendo guerras, tornando isso uma prática comercial?

Uma prática tão corriqueira que alguns dos “trabalhadores” desta atividade chegam a adquirir o direito às férias. Voltam às suas casas, passeiam com os seus familiares, fazem churrascos em seus quintais e retornam aos países distantes para bombardear e matar as suas populações, disseminando ódio e violência, sustentando a riqueza americana com a miséria alheia.

Naquela sociedade, a mesma do moço do talk-show, profissionais atiradores de elite, os chamados snipers americanos, são premiados pelo número de mortes que produzem em suas atividades, sejam crianças, mulheres, jovens, velhos, não importa. Vale qualquer o que comando empresarial-militar aponte como alvo. Recebeu a ordem? Atirou? Matou? Ganha pontos!

Qual será a moral e ética de uma sociedade onde um profissional militar, a partir das proximidades de sua residência, pode pilotar drones, objetos lançadores de foguetes que estão a milhares de quilômetros de distância, do outro lado do mundo, sobrevoando, bombardeando e matando famílias inteiras, bairros inteiros, feiras públicas, desde que o comando empresarial-militar tenha determinado a ordem de localizar e atirar?

O tal “piloto”, atividade regular naquela sociedade, cumpre o seu horário de plantão como um profissional qualquer que trabalha em turnos. Findo o expediente ele toma o seu banho, troca o uniforme e retorna para a sua casa. Quem sabe para dar risadas, ao lado da sua família, assistindo um talk-show que ironiza as “barbaridades” da sociedade “subdesenvolvida” do cone sul.

E tudo isto é feito com o conhecimento e a aprovação da sociedade americana. Nada é escondido. Quem envia drones para explodir sociedades civis é o presidente Obama com a anuência e apoio das instâncias políticas e da sociedade americana. Tanto são práticas admitidas que até geram como subproduto uma milionária indústria televisiva e cinematográfica que fatura milhões de dólares e que trata com naturalidade estes fatos, produzindo e vendendo como entretenimento “histórias baseadas em fatos reais”.

Dois exemplos típicos e recentes, romances baseados em situações reais. Veja-se : American sniper – dir. Clint Eastwood (2014) e Good kill – dir. Andrew Niccol (2014). Um dos filmes refere-se a um atirador de elite, um herói americano premiado por matar mais de 250 pessoas. O outro filme trata de um piloto de drones que, a partir de Las Vegas (EUA), dispara mísseis contra alvos, supostos terroristas, no Afeganistão, orientados por um sistema de satélites com tal precisão que quase permite identificar as expressões faciais dos alvos. Detonam casas, grupos de vizinhos que prestam socorro após os bombardeios e também os grupos reunidos para o enterro.

Suas ordens são determinadas por um comando militar que antes identificava os alvos através de informações de espionagem, mas passou a identificá-los por “comportamento típico”, ou seja, se um grupo de pessoas em uma praça ou em uma casa tem um comportamento “tipicamente suspeito”, então, kabum! Bomba neles! Do mesmo modo como a polícia no Rio de Janeiro atua em suas diligências. É preto, pobre, está em grupo? Kabum!

Os filmes tratam de dramas pessoais dos envolvidos, mas as situações são apresentadas como normais, ou seja, são institucionais e sem conflitos com os padrões éticos da sociedade americana. Uma sociedade que acha normal o império estar em guerra permanente. Que acha normal a prática de soldados mercenários, os atiradores de elite e os drones. Uma sociedade que já incluiu em suas práticas sociais cotidianas os solenes enterros militares, as entregas de bandeiras aos familiares de soldados mortos em combate, as idas e vindas de profissionais da guerra que entremeiam suas atividades com períodos de férias etc.

Esta mesma sociedade se atribui o papel de crítica moral de outras. Gargalha diante dos “absurdos” acontecimentos no Brasil.

E sobre a corrupção? Haverá sociedade que mais tenha praticado e se beneficiado da corrupção do que a sociedade americana? Corrupção em escala mundial. Será difícil apontar algum grande caso de corrupção em âmbito internacional que não tenha o envolvimento das empresas americanas suportadas e protegidas por seu governo. Aliás, como recentemente alguém resgatou em programa na TV, os EUA patrocinaram os que foram, talvez, os maiores ladrões da história política, entre eles Chiang Kai-shek (China); Rafael Trujillo (Rep. Dominicana), Fulgêncio Batista (Cuba), Anastásio Somoza (Nicarágua) e segue uma lista que parece não ter fim.

Veja-se, ainda, o caso da indústria de armamentos. Os gastos militares mundiais em 2014 chegaram a quase dois trilhões de dólares. Os EUA detêm 31% do mercado mundial exportador de armas e a transparência nos relatórios sobre a transação mundial de armas militares vêm reduzindo a cada ano (quem quiser mais informações busque em  Stockholm International Peace Research Institute – www. Sipri.org).

Como será que ocorre a negociação de armas pelas empresas americanas (empresas legalmente instituídas pela lei daquele país) com as partes nos diversos conflitos, alguns deles que os próprios americanos promovem?
Haverá concorrências com leilões públicos? Notas fiscais de compra e venda? Nada de subornos? Nada de corrupção? Profissionais idôneos executando transações comerciais isentas e... inquestionáveis? Será a lisura e honestidade nas transações a marca especial deste processo, patrocinado por aquela sociedade?

Enfim, qual o direito deste bando de corruptos cujas ações têm destruído populações inteiras, entre elas, a Palestina, o Líbano, o Iraque a Síria, se arvorar em juiz ou júri da ética e moral da sociedade brasileira?

E ainda existem brasileiros, afogados em sua baixa-estima, que declaram sentir vergonha de serem brasileiros.  Manifestando o seu complexo de vira-latas, olham para essas sociedades como se elas fossem melhores, como se todas não padecessem de uma doença comum que, infelizmente, também envolve a nossa.

Ora! Adianto o meu pedido de desculpas pela exclamação. Mas, vão todos tomar no cú!

Dona Ivone
Estou bem longe de ser um xenófobo, ao contrário, sou ideologicamente internacionalista. Para mim um ser humano não deve ser considerado “diferente” só porque nasceu na outra margem de um rio, do outro lado de um morro ou de uma cerca que determina fronteiras entre países. Não tenho cacoetes chauvinistas e valorizo pouco os patriotismos. Mas, isto não muda o fato que a organização política das pessoas se dá em torno do conceito de nação e a maior parte das sociedades é identificada assim, ainda que grande parte das origens dos nacionalismos seja de natureza econômica, bem mais do que cultural.

É com esta visão que faço esses contrapontos. Eles não são desculpas para mazelas da nossa sociedade. Nada nos redime nem nos liberta da obrigação de nos transformar socialmente em algo melhor. Porém, tendo em vista a história de formação das sociedades, no que se refere a valores éticos e morais, a sociedade brasileira em nada fica a dever às demais, especialmente às ocidentais mais próximas.

Afirmo que qualquer um “não brasileiro” terá muito que aprender com a nossa jovem sociedade. Confusa e ainda em formação, que conta com pouco mais de duzentos anos, muito menos do que seria necessário para a consolidação de uma cultura no sentido antropológico do termo.

Estamos ainda moldando a nossa cara social, mas ela já mostra alguns aspectos interessantes. Ainda carregamos como uma ferida mal tratada, incurada, os vestígios da escravidão. Ressentimentos, preconceitos, valores e discriminações. Nunca soubemos tratá-los, nunca os enfrentamos.

Contudo, cultivamos o mito da integração, e isso é bom. Trata-se de um mito, é verdade,  mas é um mito do bem porque expressa um bom desejo. E se nos empenharmos nesta luta, se fizermos disso um projeto, teremos grandes chances de chegar lá, conseguindo superar o preconceito de origem.

São incontáveis os exemplos de núcleos sociais brasileiros onde participam, sem constrangimentos, elementos de formações culturais e origens distintas, formando uma alternativa de composição tão diversa, variada e indiscriminada quanto as nossas típicas mesas de self-service.

Preconceitos? Temos muitos, mas via de regra não nos identificamos nem nos distinguimos por nossas origens, e como regra geral, entre nós, o outro sempre é bem recebido. De quantas outras sociedades podemos dizer o mesmo? Quantas se organizam com a premissa, mítica ou real, da aceitação do outro?

Somos vizinhos de 10 outros países, numa fronteira de cerca de 15.000 quilômetros sem acumular histórias de agressões e conflitos.  O próprio brasileiro terá dificuldade em avaliar a dimensão e a qualidade deste fato. Muitos nem sequer sabem, mas França e Alemanha que compartilham uma fronteira de cerca de 450 quilômetros, há menos de cento e cinquenta anos estavam engalfinhadas em guerras que produziram dezenas de milhares de mortos.

Nossa sociedade não é melhor nem pior do que as demais porque essa comparação não faz sentido. Ela existe apenas como mecanismo de dominação cultural e política como citei anteriormente. E o nosso papel como seres de uma comunidade internacional é identificar e aproveitar o melhor que cada um de nós conseguiu realizar.

Neste sentido, reafirmo que o cidadão europeu, americano ou de qualquer parte ao pisar no Brasil deveria fazê-lo respeitosamente. “Pisar nesse chão devagarinho” como ensinou a maravilhosa poetisa do samba, D. Yvone Lara.
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domingo, 19 de junho de 2016

Cobras e lagartos sobre jacarés e ariranhas

Leituras para distrair

Conversando sobre o caso do jacaré que mastigou um garotinho em Orlando – USA, no dia 13 de junho, último, um dos meus filhos comentou que estranhava o anúncio de baixa quantidade de ocorrências deste tipo lá, em Orlando.

Segundo ele, aquela região tem jacaré pra cacete, a ponto de existirem trabalhadores com a missão específica de raspar do chão restos de jacarés que são esmagados pelos automóveis nas estradas. E no intervalo de tempo em que ele morou por lá, o condomínio em que morava recebia visitas regulares de funcionários da prefeitura com instrumentos para realizar vistorias e recolher jacarés que estivessem em locais inadequados tais como quintais, pequenos lagos caseiros ou piscinas.

Mas, conversa vai e vem, e o fato da tragédia ter acontecido em um parque de diversões (Disney), lembrei e contei para eles (os "meninos" com os quais eu conversava) sobre um caso das ariranhas em São Paulo, nos anos setenta, quando eu morava lá. 

Foi no Zoológico (acho), em setembro de 1977, quando uma criança entrou ou caiu no poço das ariranhas sendo atacada por elas. Para quem não faz ideia, ariranha é um bicho feroz e conhecido como “onça-dágua”.

Outro visitante que estava com mulher e filhos, e nada tinha a ver com a criança que caiu no fosso, mergulhou para salvá-la. A criança foi salva, mas o infeliz morreu deixando a família que assistiu à tragédia. O herói era sargento do exercito brasileiro.

O então colunista da Folha de São Paulo, Lourenço Diaferia (1933 – 2008), fez uma crônica emocionada relacionando a atitude do sargento. Em seu artigo (link abaixo) ele citava o sargento como verdadeiro herói popular, comparando-o aos mitos estáticos como o representado pela estátua do Duque de Caxias, um monumento muito conhecido na cidade e que era (ou ainda é) uma referência próxima à antiga rodoviária. ”Prefiro este sargento ao Duque de Caxias”, escreveu Diaferia.

O artigo emputeceu a ditadura. Os chefões de então, Geisel, Hugo Abreu e Silvio Frota tomaram o artigo como uma ofensa a um símbolo nacional. O Diaferia entrou em cana, não sei se ganhou umas porradas, mas segundo a própria Folha de São Paulo, que havia apoiado o golpe militar há mais de 10 anos, o jornal foi ameaçado de ser fechado por ameaça direta ao seu proprietário.


Resgatei a crônica do Diaferia para mostrar para aos meninos. Mas, reli, naturalmente, e constato que ela continua emocionante e atual, assim como há quarenta anos. Compartilho registros que coletei e guardei.


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Sumário do caso e reprodução do texto do Lourenço Diaferia

Matéria da Folha relata a censura ao texto e a ameaça de fechamento do jornal




Personagens - A ariranha está sem farda. Outros são: Geisel, Hugo Abreu e Sylvio Frota


quinta-feira, 16 de junho de 2016

Dor de um punhal

Leituras para distrair


Essas anotações são réplica de mensagem que enviei a uma pessoa amiga. Em uma conversa usamos, sem perceber, a palavra punhal. Uma palavra antiga e até dramática que provocou o nosso riso e o registro a seguir.

Certamente existem outros, mas posso assegurar que esse, na foto abaixo, é um autêntico "punhal" cujo dono original  foi um trabalhador. Não era marginal, ganhava a vida como operário naval, mas cultivava fama de valente e assim era conhecido nos ambientes que frequentava quando ainda havia espaço para figuras do seu tipo. O seu nome era Reynaldo - o tio Nadinho - irmão mais velho do meu pai.

Ele era presença frequente em nossa casa porque morávamos nos fundos da residência da minha tia e madrinha, também irmã do meu pai e que operava como uma matriarca da família. Ela era  a mãe de santo do terreiro de umbanda que lá funcionava e que era um núcleo agregador da sua irmandade, em sentido literal, composta de cinco homens e duas mulheres.

Tio Nadinho, o mais velho, apesar de trabalhador, levava uma vida desregrada se comparada aos demais irmãos. Sustentava família, mas claramente não tinha o mesmo compromisso que os demais. Morava num “morro”, no bairro Engenhoca, divisa de São Gonçalo e Niterói. Mas, naquela época o morro não era favela nem local de miséria, embora carregasse o estigma de um território marginal.

Vestia-se com calças largas, camisas de flanela e mangas compridas. Nunca o vi em camisa de mangas curtas. Usava um chapéu de lona, com abas, quase cowboy, que era um dos identificadores da sua tribo na região. Em linguagem moderna a sua vestimenta formaria um “hashtag valentão”.

Na cintura ele portava um punhal. Sempre escondido quando estava próximo de nós, mas nos seus ambientes era importante que soubessem da existência da arma. Além do mais, ele tinha um andar balançando o corpo, com as mãos raspando nas pernas ao andar, gestos que acentuavam a caricatura do “malandro”. Com o tempo aprendi que não era uma coreografia ensaiada, mas apenas um jeito característico de família que até o meu pai e outros irmãos também possuíam.

Tio Nadinho sempre foi recebido, lá em casa, com alguma reserva por parte do meu padrinho e da minha mãe que eram seus cunhados. O meu padrinho, “dono” da casa principal, não escondia a opinião que o seu cunhado não era flor que se cheirasse, e minha mãe, que ele tratava por comadre, eriçava os pelos tentando proteger o meu pai e buscando mantê-lo longe das aventuras do seu irmão mais velho.

A relativa animosidade na recepção se justificava por duas razões principais. Uma delas era porque, geralmente, o visitante irradiava o aroma de umas boas e indisfarçáveis cachaças. Algumas vezes, a situação era tal que ele nem ultrapassava o portão do quintal, um limite que ele mesmo se impunha, respeitosamente. Mesmo assim, ele passava por lá, assiduamente, para prestar contas à irmã que não abria mão da sua visita. E era nossa obrigação (as crianças) ir até ele e cumprir o ritual da benção - “Bença, tio Nadinho!” - que ele respondia com as palavras que estivesse em condições de pronunciar.

Outra razão que justificava a recepção era porque, também muitas vezes, a sua visita era precedida de notícia ou boato sobre alguma arruaça que ele havia promovido no Largo da Morte, atualmente Largo de São Jorge, um espaço de comercio próximo à descida do morro onde ele morava, e onde era tido como um dos valentes locais.

Tio Nadinho morreu com idade avançada para o seu tipo de vida, e de morte natural. Alguma doença que não recordo. Nos tempos atuais sequer teria chegado à idade adulta. Teria sido despachado para o além, bem cedo, junto com a sua valentia. Nas minhas lembranças ele era simpático e cordial, embora não fosse um tipo carinhoso, também comparado aos seus irmãos. Meus primos e primas, seus descendentes, foram modestos e honrados trabalhadores, não sei de nenhum que tenha saído pelas marginais.

Em uma das aventuras de tio Nadinho, o meu pai, ainda solteiro, e que, apesar mais novo, gozava de alguma autoridade sobre o irmão, foi chamado para intervir e desarmá-lo. Dele o meu pai tomou e guardou esse punhal, o da foto, que passou a pertencer à nossa casa, que acompanhou a minha infância e a do meu irmão Sergio. Punhal que ainda guardo comigo e que conjugado com a conversa sobre essa palavra antiga e fora de uso serviu de mote para resgatar essa história, também antiga e de uso nenhum. 

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Sobre a Engenhoca e o Largo da Morte



O punhal