Leituras para distrair
Essas anotações são réplica de
mensagem que enviei a uma pessoa amiga. Em uma conversa usamos, sem perceber, a
palavra punhal. Uma palavra antiga e até dramática que provocou o
nosso riso e o registro a seguir.
Certamente existem outros, mas posso
assegurar que esse, na foto abaixo, é um autêntico "punhal" cujo dono
original foi um trabalhador. Não era marginal, ganhava a vida como
operário naval, mas cultivava fama de valente e assim era conhecido nos
ambientes que frequentava quando ainda havia espaço para figuras do seu tipo. O
seu nome era Reynaldo - o tio Nadinho - irmão mais velho do meu pai.
Ele era presença frequente em nossa
casa porque morávamos nos fundos da residência da minha tia e madrinha, também
irmã do meu pai e que operava como uma matriarca da família. Ela era a
mãe de santo do terreiro de umbanda que lá funcionava e que era um núcleo
agregador da sua irmandade, em sentido literal, composta de cinco homens e duas
mulheres.
Tio Nadinho, o mais velho, apesar de
trabalhador, levava uma vida desregrada se comparada aos demais irmãos.
Sustentava família, mas claramente não tinha o mesmo compromisso que os demais.
Morava num “morro”, no bairro Engenhoca, divisa de São Gonçalo e Niterói. Mas,
naquela época o morro não era favela nem local de miséria, embora carregasse o
estigma de um território marginal.
Vestia-se com calças largas, camisas
de flanela e mangas compridas. Nunca o vi em camisa de mangas curtas. Usava um
chapéu de lona, com abas, quase cowboy, que era um dos identificadores da sua
tribo na região. Em linguagem moderna a sua vestimenta formaria um “hashtag
valentão”.
Na cintura ele portava um punhal.
Sempre escondido quando estava próximo de nós, mas nos seus ambientes era
importante que soubessem da existência da arma. Além do mais, ele tinha um
andar balançando o corpo, com as mãos raspando nas pernas ao andar, gestos que
acentuavam a caricatura do “malandro”. Com o tempo aprendi que não era uma
coreografia ensaiada, mas apenas um jeito característico de família que até o
meu pai e outros irmãos também possuíam.
Tio Nadinho sempre foi recebido, lá
em casa, com alguma reserva por parte do meu padrinho e da minha mãe que eram
seus cunhados. O meu padrinho, “dono” da casa principal, não escondia a opinião
que o seu cunhado não era flor que se cheirasse, e minha mãe, que ele tratava
por comadre, eriçava os pelos tentando proteger o meu pai e buscando mantê-lo
longe das aventuras do seu irmão mais velho.
A relativa animosidade na recepção se
justificava por duas razões principais. Uma delas era porque, geralmente, o
visitante irradiava o aroma de umas boas e indisfarçáveis cachaças. Algumas
vezes, a situação era tal que ele nem ultrapassava o portão do quintal, um
limite que ele mesmo se impunha, respeitosamente. Mesmo assim, ele passava por
lá, assiduamente, para prestar contas à irmã que não abria mão da sua visita. E
era nossa obrigação (as crianças) ir até ele e cumprir o ritual da benção - “Bença,
tio Nadinho!” - que ele respondia com as palavras que estivesse em
condições de pronunciar.
Outra razão que justificava a
recepção era porque, também muitas vezes, a sua visita era precedida de notícia
ou boato sobre alguma arruaça que ele havia promovido no Largo da Morte,
atualmente Largo de São Jorge, um espaço de comercio próximo à descida do morro
onde ele morava, e onde era tido como um dos valentes locais.
Tio Nadinho morreu com idade avançada
para o seu tipo de vida, e de morte natural. Alguma doença que não recordo. Nos
tempos atuais sequer teria chegado à idade adulta. Teria sido despachado para o
além, bem cedo, junto com a sua valentia. Nas minhas lembranças ele era
simpático e cordial, embora não fosse um tipo carinhoso, também comparado aos
seus irmãos. Meus primos e primas, seus descendentes, foram modestos e honrados
trabalhadores, não sei de nenhum que tenha saído pelas marginais.
Em uma das aventuras de tio Nadinho,
o meu pai, ainda solteiro, e que, apesar mais novo, gozava de alguma autoridade
sobre o irmão, foi chamado para intervir e desarmá-lo. Dele o meu pai tomou e
guardou esse punhal, o da foto, que passou a pertencer à nossa casa, que
acompanhou a minha infância e a do meu irmão Sergio. Punhal que ainda guardo
comigo e que conjugado com a conversa sobre essa palavra antiga e fora de uso
serviu de mote para resgatar essa história, também antiga e de uso
nenhum.
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Sobre a Engenhoca e o Largo da
Morte
O punhal
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