Leituras para distrair
Talvez por conta da idade, as
memórias recentes perdem prioridade, como se não encontrassem um
alojamento. As vagas estão tomadas por outras de tempos distantes. Indício de Alzheimer?
Não importa, esquecerei também! O fato é que as lembranças mais antigas povoam
o meu cérebro de uma forma até implicante.
Vi um menino empinando uma pipa na
praia. O moleque corria pra lá e pra cá num movimento repetido por
milhões de crianças em todo o mundo. Lembrei que, a rigor, nunca “empinei
pipa”. Tive familiares que moravam em subúrbio da cidade do Rio de Janeiro
e que empinavam pipas. Mas, lá em São Gonçalo, outro lado da poça, a
molecada “soltava cafifa”.
Empinar pipa e soltar cafifa eram
exatamente a mesma brincadeira, mas as designações e tipos de cafifas ou de
pipas eram distintos. Cafifa e pipa eram designações genéricas, em São Gonçalo
e no Rio. Porém, cafifas não usavam as “rabiolas” um complemento
fundamental nas pipas cariocas. Arraias, piões, morcegos e marias-largas eram tipos específicos de cafifas. Distinguiam-se pelos formatos das
armações de bambu. Nenhuma delas com rabiolas. Entre as pipas cariocas havia os
morceguinhos, piões e outros tipos que eu nunca soube, não era minha praia.
Invariavelmente, todas com rabiolas enormes.
As cafifas e as pipas que falo nada
tinham a ver com as peças que hoje frequentam os campeonatos de pipas. Por mais
lindas que sejam, e apesar de carregarem consigo a
experiência e a prática popular, não eram essas pipas de campeonato que
povoavam os céus em nossa infância. Sem desfazer
da qualidade técnica de suas construções , nem da beleza e encantamento que
lhes são peculiares, as atuais pipas de campeonato não representam a memória das nossas brincadeiras
infantis, aqui, no estado do Rio de Janeiro. As atuais pipas de campeonato
parecem representar uma história recente de cópia e assimilação de práticas
estrangeiras.
No alto, as cafifas eram presas e
controladas por linhas de algodão esticadas e embebidas em uma mistura de cola
de madeira e vidro moído que chamávamos de “cerol”. Com as pipas também
era assim, mas a mesma mistura era chamada de “cortante”.
Através de manobras que faziam as linhas deslizarem uma sobre a outra, era
possível cortar uma delas conforme a eficiência do cerol ou cortante. Entre as
cafifas essa disputa era chamada de “torar”. Entre as pipas o termo mais
comum era “cruzar”.
Interessante é que, em linha
reta, as populações de moleques não se distanciavam mais que 50
quilômetros. Porém, os vocabulários eram distintos, embora atualmente se
confundam. Eles identificavam territórios, as nossas origens. Possivelmente
alguém nessa web que é a enciclopédia do mundo terá registrado as
correspondências. Eu só guardei algumas.
Quando uma linha esticada no alto
precisava ser alcançada, amarrávamos duas pedras em cada ponta de um pedaço
de outra linha, imitando uma boleadeira gaúcha, e jogávamos para fazer a linha
esticada descer. A nossa boleadeira tinha o nome de “landrola” e a mesma
peça era chamada pelos moleques cariocas de “marimba”.
Após passar o cerol (essa expressão hoje tem um significado macabro) na linha esticada, para tirar os excessos acumulados tensionávamos a
linha brevemente, como se faz ao tocar uma corda de violão. Essa ação era
chamada de “estancar”. A linha esticada se prendia à cafifa através de
um pedaço também de linha chamado “cabresto”, e quando numa tora entre duas
cafifas o corte se dava bem longe do cabresto causando a perda de uma grande
quantidade linha, que ia junto a cafifa torada, a garotada dizia que a cafifa
foi torada “na mão”.
Sem rabiolas era muito difícil capturar
uma cafifa torada ainda solta no ar. Mas, havia os virtuoses que conseguiam
realizar essa façanha que se chamava “aparar”. Cortei e aparei!
Gabava-se o triunfante do embate.
Esse tal alemão que apavora as velhices
poderá até me deixar bastante confuso, mas não vai me tirar essas lembranças, jamais. Fecho os
olhos e “dou linha” no carretel do
tempo.
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