Opinião
Há cerca de 10 anos eu fiz um
registro de opinião nesse blog sobre as
cotas para negros nas universidades e incluí
uma citação do professor Boaventura de Souza Santos extraída de um artigo de
sua autoria intitulado “As dores do pós colonialismo”. No artigo o professor comenta sobre o papel do racismo no
colonialismo, caracteriza o que ele chama de pós-colonialismo, e aponta a
necessidade de uma vontade política desracializante como condição fundamental
para a passagem de um período pós-independência para um período pós-colonial.
Passagem que só estaria ocorrendo no Brasil cento e oitenta e quatro anos após
a nossa independência. O artigo foi publicado na Folha de São Paulo, em 2006.
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Nesses dias nos quais fervilham exemplos
de retrocesso político, quando as lutas identitárias e os movimentos sociais enfrentam ameaças de
criminalização, quando manifestações de cunho racista são declaradas sem
qualquer constrangimento por representantes do poder político, busquei uma
releitura do artigo do professor Boaventura. Não canso de reverenciar o brilhantismo
desse intérprete do pensamento de uma grande parte de nós. A democracia
hipócrita, diz o professor, “Admite que os negros e os
indígenas são discriminados porque são pobres para não ter de admitir que eles
são pobres porque são negros e indígenas”.
Em seu artigo o professor sugeriu
uma esperança que, em certos aspectos, acho que foi frustrada. Mas, como ele
próprio afirma, a viragem descolonial é um processo civilizatório complexo, mas
também é irreversível. Faço essa introdução como um convite para a leitura do
artigo que permanece atualíssimo. Seria uma enorme redução tentar fazer uma
resenha, vale muito mais o convite. Um convite para quem quer e precisa pensar,
refletir e também se armar para os enfrentamentos contemporâneos. Sugiro a leitura.
As dores do pós
colonialismo
Folha de S.Paulo 11 de Agosto de
2006 – Boaventura de Sousa Santos
Cento
e oitenta quatro anos depois, o Brasil parece finalmente estar a passar do
período da pós-independência para o período pós-colonial. A entrada neste
último período dá-se pela constatação, discutida na esfera pública, de que o
colonialismo, longe de ter terminado com a independência, continuou sob outras
formas, mas sempre em coerência com o seu princípio matricial: o racismo como
uma forma de hierarquia social não intencional porque assente na desigualdade
natural das raças.
Esta constatação pública é o primeiro passo
para se iniciar a viragem descolonial, mas esta só ocorrerá se o racismo for
confrontado por uma vontade política desracializante firme e sustentável. A
construção dessa vontade política é um processo complexo, mas tem a seu favor,
não só um punhado de convenções internacionais, como também e, sobretudo, a
força política dos movimentos sociais protagonizados pelas vítimas
inconformadas da discriminação racial.
A
viragem descolonial para ser eficaz, tem de ocorrer no Estado e na sociedade,
no espaço público e no espaço privado, no trabalho e no lazer, na educação e na
saúde. É, pois, um processo civilizatório, tão complexo quanto irreversível.
A
modernidade ocidental foi na sua origem, simultaneamente um processo europeu,
dotado de mecanismos poderosos como a liberdade, igualdade, secularização,
inovação cientifica, direito internacional e progresso, e um processo
extra-europeu, dotado de mecanismos não menos poderosos como o colonialismo,
racismo, genocídio, escravatura, destruição cultural, impunidade, não-ética da
guerra. Um não existiria sem o outro.
Por
terem sido concedidas aos descendentes dos colonos europeus e não aos povos
originários ou aos para aqui trazidos pela escravatura (com exceção do Haiti),
as independências latino americanas legitimaram o novo poder por via dos
mecanismos do processo europeu para poderem continuar a exercê-lo por via dos
mecanismos do processo extra europeu.
Assim
se naturalizou um sistema de poder que, sem contradição aparente, arma a
liberdade e a igualdade e pratica a opressão e a desigualdade. Um sistema até
hoje em vigor, ou seja, até à entrada no período pós-colonial.
Assentes
neste sistema de poder, os ideais republicanos da igualdade constituem uma
hipocrisia sistêmica. Só quem pertence à raça dominante tem o direito (e a
arrogância) de dizer que a raça não existe ou que a identidade étnica é uma
invenção.
Uma
democracia hipócrita não chega sequer a ter o mérito da hipocrisia
democratizada. O máximo de consciência possível desta democracia hipócrita é
diluir a discriminação racial na discriminação social. Admite que os negros e
os indígenas são discriminados porque são pobres para não ter de admitir que
eles são pobres porque são negros e indígenas.
É,
pois, uma democracia de muito baixa intensidade. A sua crise não começa no
momento em que as vítimas da discriminação se organizam para lutar contra a
ideologia que os declara ausentes e as práticas que os oprimem enquanto
presenças desvalorizadas.
São
lutas por uma democracia de alta intensidade e por um republicanismo robusto. Distinguem
se dos seus antecessores por duas razões. Em primeiro lugar, assentam na luta
simultânea pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença. Reivindicam o
direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito de ser
diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Em segundo lugar, apostam em
soluções institucionais dentro e fora do Estado para que o reconhecimento dos
dois princípios seja efectivo. Daí a luta pelos projectos de lei de Cotas e do
Estatuto da Igualdade Racial.
O
alto valor democrático destes projectos de lei reside na ideia de que o
reconhecimento da existência do racismo só é legítimo quando visa a eliminação
do racismo. É o único antídoto eficaz contra os que têm o poder de desconhecer
ou negar o racismo para o continuarem a praticar impunemente.
Estes
projectos de lei, se aprovados e aplicados, darão ao Brasil uma nova autoridade
moral e um novo protagonismo político no plano internacional.
Mas
será, no plano interno, que os seus efeitos positivos mais se farão sentir: a
construção de uma coesão social sem a enorme sombra do silêncio dos excluídos.
Para que tal ocorra, os movimentos sociais não podem confiar demasiado na
vontade dos governantes dado que eles são produtos do sistema de poder que
naturalizou a discriminação racial. Para que eles sintam a vontade de se
descolonizarem é necessário pressioná-los e mostrar-lhes que o seu futuro
colonial tem os dias contados.
Esta
pressão não pode ser obra exclusiva do movimento negro e do movimento indígena.
É necessário que o MST, os movimentos de direitos humanos, sindicais,
feministas, ecológicos, etc., se juntem à luta no entendimento de que, no
momento presente, a luta pelas cotas e pela igualdade racial condensa, de modo
privilegiado, as contradições de que nascem todas as outras lutas em que estão
envolvidos.
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[2]