Opinião
Qualquer que seja o rumo da guerra,
uma coisa é certa: o ex-capitão Bozo ganhou a importante batalha sobre o juízo
da sua ação no combate à pandemia. Caminhamos para 110 mil mortos nos próximos
dias e com expectativas trágicas para os meses seguintes, mas essa quantidade enorme de mortos parece
não afetar nossa sociedade.
A tragédia só impressiona a visão que
inclui o óbito de alguém próximo ou querido. No mais, nossa sociedade reage
como se estivesse cagando e andando para o que significa essa multidão de
cadáveres. A morte por coronavírus no Brasil está completamente banalizada e a propagação
do vírus continua sem qualquer ação consistente de controle e sem sinal de
reversão. A fábrica de mortos mantém sua
produtividade de 1000 (mil) mortos por dia.
As mortes já não espantam. Não
surpreendem. Não chocam. Nem são notícias que mereçam destaques, salvo quando
associadas a algum outro fato que “adicione
valor” ao evento. Um nome conhecido,
uma situação inusitada, um fato pitoresco ou de morbidez acentuada. De resto é
complacência total. Ou seria cumplicidade?
O ex-capitão
Bozo conseguiu. É importante admitir. Emplacou seu discurso e comportamento.
Seu rebanho arrastou consigo a sociedade, mesmo que muitos possivelmente não quisessem
acompanhar a boiada, mas se deslocam no mesmo sentido, talvez para evitar o atropelamento. Assim, validam o
discurso do Bozo. Vejamos as pesquisas. Que
pessoas são essas que isentam completamente os responsáveis por essa prática genocida
adotada em relação à pandemia no Brasil?
Mergulho em
Hannah Arendt. Afinal, essas pessoas que apoiam e isentam o Bozo não são
especialmente malignas, malévolas. São pessoas comuns, normais. Assustadoramente
normais, como disse Arendt referindo-se ao perfil dos carrascos nazistas. Uma normalidade
mais apavorante do que suas próprias atrocidades, dizia ela, porque aponta um tipo humano criminoso que comete seus
crimes sem, nem mesmo, saber ou sentir que está agindo errado. A filósofa alemã
pagou preço alto por essas suas observações.
São pessoas
que abrem mão da sua capacidade de pensar
e distinguir o bem do mal. Abrem mão da sua humanidade. E o mal, disse Arendt, é como um fungo que se alastra e provoca
uma espécie de colapso moral na sociedade. Afeta inclusive as vítimas. Impede a
capacidade de pensar.
Aqui, no
Brasil, vamos para as ruas, abrimos as escolas, enchemos os ambientes públicos,
mas não nos sentimos responsáveis. Cumprimos
ordens. Hannah Arendt chamou isso de *a banalidade do mal*.
Minhas
observações podem ser repetições toscas de outras verdadeiramente importantes e mais consistentes que já trouxeram
a memória de Hannah Arendt para a análise dos tempos atuais. Mas, é o jeito que
consigo fazer. Precisamos desse exercício porque também nós estamos no limiar
dessa banalidade.
Enfrentamos
a falta total de expectativas de um encaminhamento sadio. Não é possível deixar
que a pandemia siga esse caminho, devorando vidas indefesas até que aconteça um
imaginado e esperançoso equilíbrio por saturação de oportunidades de
contaminação.
Parcela
significativa da sociedade ainda não está infectada pelo coronavírus, mas está
doente. Está infectada pelo fungo de um mal que embota a sua capacidade de
pensar e reagir. Vê com uma naturalidade apática o extermínio de membros de populações
em comunidades carentes, entre elas as comunidades indígenas. Absurdo!
Essa
parcela de sociedade banaliza a quantidade de mortes e contaminações. Adota sem
rebeldia as decisões de governantes genocidas. Decisões sem qualquer sustentação
que não seja atender o interesse de grupos de poderes políticos e econômicos.
Estamos
apenas cumprindo ordens, não somos responsáveis? Foi assim que a sociedade
alemã, contaminada pelo fungo do mal, banalizou as patrulhas oficiais e
milícias que aprisionavam cidadãos
judeus e os encaminhava para o holocausto. Tudo dentro da lei e da normalidade.
Não nos
iludamos. Estamos em meio a uma pandemia e um golpe político. Um golpe de
estado que ainda não acabou. A pretensão e crendice eleitoral que abre mão de
qualquer prática dos valores esquerdistas e que
evita tratar qualquer tema que ponha em risco o sonho de uma solução via
vitória eleitoral é um suicídio. #####
NOTA
Citado no texto:
Arendt, Hannah - Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal – Ed. Cia. das Letras, São Paulo, 1999
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