Opinião
Hoje foi dia de mais um amanhecer calmo e bonito na baía
de Guanabara, visto da minha janela. Além do tráfego, a agitação maior ficou
por conta dos preparativos para uma festa de lançamento da camisa da seleção
brasileira que ocorrerá no aterro do Flamengo. Mas, esta manhã teve um
significado especial porque assinalou 103 anos da revolta da Chibata, assim
batizada pelo jornalista Edmar Morel. Um movimento deflagrado por marinheiros
brasileiros, em 22 de novembro de 1910, que determinou o fim dos castigos
físicos, incluindo o açoite por chibatas, até então praticados pela Marinha do
Brasil a título de punição disciplinar.
Os marujos, liderados, entre outros, pelo marinheiro João
Cândido, assumiram em motim o comando da esquadra brasileira que na época era
terceira maior do mundo. Combateram os oficiais que resistiram ao levante,
ocuparam os comandos das embarcações, situaram-nas em pontos estratégicos da
baía da Guanabara, e puseram a cidade do Rio de Janeiro, centro político do
país, sob a mira de canhões e encaminharam um ultimato ao governo do presidente
da república Hermes da Fonseca exigindo que as suas reivindicações fossem
acatadas. Enquanto isto, aquela “corja”, como eram considerados pelos oficiais e
pela hierarquia naval, manejava com uma surpreendente maestria e destreza as
moderníssimas embarcações, recém-adquiridas pelo Brasil, diante dos olhos espantados
de um poder encurralado e de uma população apavorada e curiosa que assistia o
desenrolar dos acontecimentos.
Os marujos foram vitoriosos e fizeram o governo ceder.
Não eram revolucionários, não tinham projetos de poder, assim, logo que foram
formalizadas as ordens para o cumprimento de suas reivindicações, num gesto de obediência
ao poder instituído, devolveram o comando das embarcações. Pagaram com suas
vidas por isto porque a vingança covarde do Estado não demorou a se manifestar.
Os marinheiros, especialmente os líderes do movimento, foram expulsos,
torturados, fuzilados e até traficados como escravos. Condenados ao
esquecimento e à rejeição por uma Marinha que celebra o vergonhoso golpe 1964, mas
que sempre relutou em reconhecer aqueles que deveriam ser enaltecidos como heróis
nacionais.
Alguns brasileiros terão ouvido falar ou, a rigor, ouvido
cantar, as referências à revolta da Chibata na letra e música do samba “O mestre-sala
dos Mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, e uma boa parte dos ouvintes provavelmente
nem sabe o que o evento representou. Ainda
são poucas as reverências ao fato, e a sua dimensão política é subavaliada
quando reduzida à questão dos castigos físicos. Mas, parece que será assim que a
sociedade brasileira recuperará e recomporá a sua história, através de seus
cantos, suas crônicas, seus cordéis, seus enredos festivos, em narrativas tão
populares quanto os seus verdadeiros heróis. Talvez seja um bom caminho para evitar
imaginá-los como super-heróis, acima do bem e do mal.
Há uma estátua do João Candido instalada num canto da
Praça XV, no Rio de Janeiro, desde 2008, quando o presidente Lula sancionou a
lei concedendo a anistia post-mortem dos
marinheiros de 1910. Talvez um prefeito desses, dos quais existem tantos por
aí, venha a deslocá-la, ou relaxe a sua manutenção, mas ela está em um bom
lugar - nas pedras do cais, como alguém já ressaltou. Sempre que passo pela Praça
XV caminho próximo à estátua, e aconselho outros para que façam o mesmo. Nada de
preces, promessas, pedidos, esconjuros ou mandingas, mas pensando na barra
pesada que aqueles companheiros enfrentaram. Nas situações e nas atuações dos diversos
personagens. Nos contextos em que os fatos se desenrolaram, tomando isto como motivação
para as nossas vidas nos cenários atuais. Como um estímulo para assumirmos o comando
e determinarmos as manobras dessa embarcação que compartilhamos, mesmo que seja
necessário um motim.