domingo, 18 de junho de 2017

Isso foi lá, com Santo Antonio

Leituras para distrair

Santo Antonio era o padroeiro de um dos dois centros de umbanda que funcionavam em nossa casa, lá em São Gonçalo, RJ, e dia de Santo Antonio era de festa e comemorado de um jeito muito especial. Foguetes e balões!

As festas religiosas na casa da minha madrinha (eu morava em casa de fundos) tinham um modelo básico com algumas variações, conforme a data. O ritual começava à tarde, com rezas cantadas, defumação dos ambientes com fumaça aromática de ervas queimadas em carvão, e com benzedura dos presentes. Mais tarde era rezada uma ladainha, nos moldes das ladainhas católicas, e após a ladainha havia uma sessão de umbanda com possessão dos médiuns pelas várias entidades. Mas, não se utilizava o termo possessão, usava-se o termo incorporação. Os cantos dos pontos de macumba determinavam as idas e vindas das entidades. Finalmente, após a sessão de umbanda, havia uma confraternização entre os presentes, com doces e sucos, e as crianças podiam fazer as algazarras que eram contidas durante as cerimônias. Porém, nos dias de Santo Antonio não tinha sessão de macumba que era realizada em outra data. Mas tinha foguetes e balões.

Para nós, as crianças, bom mesmo eram as preliminares e a parte final da festa. Nos dias que antecediam Santo Antonio a casa era movimentada devido à confecção dos doces e outros arranjos sempre com a participação de vizinhos, parentes e amigos. E tinha os balões que eram confeccionados pelo meu pai também com a ajuda de outros. O expediente do velho na metalúrgica em que trabalhava começava na madrugada, assim, a tarde ele já estava em casa com a missão de confeccionar os balões. Para nós eram enormes, construídos com papel manilha, um papel reciclado que, na época, só existia nas cores verde e rosa e que era utilizado para embrulho. As folhas eram dobradas, cortadas e coladas num arranjo e técnica que o meu pai dominava. Eram sempre dois balões.

O formato dos balões era tradicional e o os tamanhos eram contabilizados pela quantidade de folhas utilizadas. Cento e vinte, cento e oitenta ou duzentos e quarenta folhas era a ordem de grandeza. A confecção ocupava toda a varanda lateral da casa, e a nossa participação, sob o olhar crítico do velho pra ninguém fazer cagada, era na colagem dos gomos do balão utilizando cola de farinha de trigo. À noite desenvolvia-se o trabalho de confecção das lanterninhas que iluminariam os balões. Muito legal!

O ponto alto da festa era a hora de soltar os balões. Alguém em cima do muro com uma enorme vara de bambu com corda e roldana para suspender o balão, a multidão em volta segurando e abrindo os gomos, uma enorme tocha acesa para inflar o balão, outro grupo acendendo e colocando as carreiras de lanternas. A bucha parecia rocamboles montados uns sobre os outros, construídos com sacos de estopa recheados de sebo, vela e parafina, um projeto que só estava registrado na cabeça do baloeiro, mas nas proporções certas para não pesar demais e cumprir a função de fazer subir o balão. A sua instalação era uma arte. Uma boca postiça construída em vergalhão e afixada na boca original do balão moldada em bambu. Uma sequencia de tarefas realizadas com precisão e cuidados para que não ocorresse o pior, o balão pegar fogo. Ninguém pensava em outro tipo de acidente.

Os mais velhos, posicionados também sobre os muros, portavam, entre os dedos, charutos com os quais acenderiam os foguetes que acompanhariam a subida do balão. Balão cheio, bucha instalada firme e acessa, o bicho pedia pra subir, e subia! Lindo! Palmas, abraços, admiração, cumprimentos e manifestações de alívio do pessoal envolvido. Um espetáculo que me emociona ao tentar relatar. Todo iluminado pelas lanternas e os foguetes subindo e pipocando. Quem nunca viu a subida de um balão caseiro perdeu a oportunidade de uma deliciosa da sensação, especialmente quando amplificada pelo nosso ilimitado imaginário infantil.

Em Santo Antonio tudo era especial. Não era uma festa junina, dessas com barraquinhas, quadrilhas e fantasias caipiras. Era uma festa do santo e da casa. E eram dois balões para serem soltos em locais distintos. A nossa casa, dos meus pais e padrinhos, ficava no bairro Zé Garoto, e o meu padrinho tinha um comercio cerca de três quilômetros dali, no bairro Estrela do Norte. O comercio era um boteco que levava o nome de Santo Antonio, mas todos só se referiam a ele como o “Cuspidor”, e era lá que era solto o segundo balão.

Havia um compadre, a quem dávamos o tratamento de tio, que era proprietário de dois ou três caminhões com os quais transportava laranjas. Então, após a subida do primeiro balão, todos os que estavam na festa amontoavam-se nas carrocerias dos caminhões do meu “tio Avelino“ que já estavam aguardando. E aquele povo se deslocava até o Cuspidor onde se repetia a cena de lançamento, agora do segundo balão. Só então a galera dispersava com a festa dada por encerrada. Felizes voltávamos caindo de cansaço, tomados pelo de sono e, certamente, chatos e irritadiços como são as crianças nessas situações. Muitas vezes carregados em colo por seu Alcino que não sei de onde retirava tanta energia e carinho.

Houve um ano em que um dos balões incendiou e foi o mote para suspender a festa. O pessoal teve o discernimento de parar de soltar os balões, felizmente sem que tivesse acontecido qualquer acidente grave, nem mesmo algum evento de importância. Mais tarde, adolescente, também fiz balões, mas nunca comparados aos que o meu velho fazia.

De Santo Antonio ficaram essas lembranças arrumadas em minha memória do meu jeito, certamente com bastante fantasia. Elas foram resgatadas porque o meu irmão Sergio, nessa semana, fez uma festa lá na Bahia, num cuspidor que ele administra. E enfeitou a festa com uma imagem de Santo Antonio, a mesma que sempre esteve em nossa casa, em nosso quarto, e que velou noites e dias muito felizes da nossa infância. Viva Santo Antonio!


O Santo Antonio da nossa infância - Agora na Bahia

Lembrança - Trecho do Estatuto do centro de umbanda "Recinto de Santo Antonio"
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