segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Uma Atlântida carioca

 

Leituras para distrair

 

Conheci uma figura que dizia existir sob a baía de Guanabara uma população alienígena, e que havia alguns portais de passagem entre o nosso mundo, terrestre, e o alienígena, subaquático. Quando soube da história eu tomei como piada. Não a tese de um mundo submarino, mas o fato de haver alguém que descaradamente propagava aquela história, até que eu conheci o sujeito.

Não foi  um conhecimento ocasional, brincalhão. Não ocorreu em um boteco, bebendo umas cachaças, nem em conversas fiadas de esquinas. Longe disso. Foi em um  grupo de trabalhos de engenharia que coordenei com profissionais de diferentes empresas, todos reconhecidamente competentes entre os seus pares.

Alguns já se conheciam, eram colegas de trabalho, outros começavam a se conhecer. Achei que era sacanagem, que eram conversas de aproximação e coisas do tipo. Cuidadoso, antes de outra reação, procurei saber mais sobre o novo colega e se, de fato, tratava-se apenas de uma brincadeira entre trabalhadores. Não era assim. O sujeito era bem conhecido em seu local de trabalho,  ele e suas teses. Eu era um dos mais novos a ter contato com ele que, conforme fiquei sabendo, tinha até um histórico importante de trabalhos profissionais.

Sempre cuidadoso, busquei me aproximar e a recepção foi amigável e tranquila. Não havia segredos entre ele e seus companheiros de empresa. Todos conheciam suas histórias, e ele estava acostumado com a perplexidade dos novos ouvintes e até com a gozação de alguns dos seus colegas quando tratavam do assunto.

Fiz o que pude para viabilizar uma aventura pelo tal portal, mas minha viagem nunca ocorreu. Devo dizer em defesa do então colega que todos os impedimentos foram circunstanciais, e nenhum decorreu de objeções dele em comprovar suas histórias. Ele sempre esteve disposto a me levar para conhecer o tal mundo desde que atendidas algumas obrigações, que eu nunca soube exatamente quais eram, para a realização da passagem.

A vida profissional nos separou. O sujeito trabalhava em outra empresa e não sei qual fim levou, possivelmente estará aposentado, se ainda estiver vivo. Hoje, vejo a baía de Guanabara da qual tenho visão privilegiada (não tinha na ocasião) e imagino se a população da Atlântida carioca, que perdi a oportunidade de conhecer, continua por lá. Pensei nisso durante a queima de fogos na última virada de ano: Icaraí, Flamengo, Copacabana, suponho que deve ter sido uma aporrinhação para os extraterrenos.

As vezes penso se deveria ter dedicado mais atenção para desvendar aquela história do meu colega maluquinho, mas sempre será uma lembrança boa. Gosto disso,  ainda mais quando penso que a história nasceu de um sujeito que o senso comum costuma rotular como “normal”. Trabalhador, responsável, formação técnica profissional, emprego formal etc. Não tenho autorização nem lembrança para publicar nomes, mas foram várias as testemunhas que viveram essa história comigo e que entrou para o meu acervo de histórias para distrair.

Lembro de outra, essa mais conhecida, que está até no Google. Entre os tantos profissionais normais com quem trabalhei,  cruzei com um que criava Sacis, e que chegou mesmo a formar uma Associação de Criadores. Que tal?

 

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quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Sem resposta, nem proposta

 

Opinião

 

Recebi mensagem reproduzindo notícia de um jornal local com a manchete:

Nova Operação estoura Cracolândia em frente ao Palácio do Catete

A notícia se referia a um  ajuntamento, ainda pequeno, embora permanente e crescente de indigentes que ocupam o corredor entre o muro do Museu da República e  as construções do elevador e de ventilação do Metro Catete, aqui, na cidade do Rio de Janeiro, e onde consomem o crack que é um derivado da cocaína. Segundo a notícia, houve operação anterior, 9 meses antes, e sobre a ação na quarta feira última, 09 de janeiro de 2024, o jornal disse:

Os 11 cracudos abordados possuíam antecedentes criminais, como roubo, furto, Lei Maria da Penha, entre outros. Um deles, possuía oito passagens pela polícia... “

Em conversa com pessoa amiga comentamos sobre como responder a esse tipo de  desafio social partindo da premissa que agir contra o aumento de moradores de rua viciados em crack e que formam as apelidadas cracolândias, com todas as suas características e consequências, não pode ser simplesmente tirá-los da nossa frente ou matá-los.

De minha parte, assumo que não tenho resposta nem proposta para esse enfrentamento. Nem  mesmo se eu tivesse poderes econômico e político absolutos eu não saberia como tratar tal problema, esse tipo de vício e viciados.

Conheço algumas iniciativas beneméritas, mas que são de caracteres praticamente individuais, de pessoas que dedicam suas vidas aos cuidados desses necessitados. Mas, eu não estou entre essas pessoas e a sociedade não é povoada de padres lancellottis. Também não acho que esse seja o tipo de política pública que possa responder a esse problema social.

Faço o exercício de tentar, mas não consigo imaginar uma sociedade de seres que se autodiagnostiquem como sadios  e que se organizem em um ambiente de aceitação e convivência em espaços comuns com outros também humanos, mas que por circunstâncias infelizes e diversas foram transformados em mortos-vivos. Uso a voz passiva porque acredito que ninguém terá mergulhado nessa situação por vontade consciente .

Imagino iniciativas de repressão ao tráfico e comercio de drogas que contribuam para mitigar as taxas de aparecimento de novos viciados, assim como imagino ações de natureza sanitária que possam auxiliar os indigentes, mas o vício sempre existirá e sou completamente ignorante sobre o assunto. Nem mesmo sei de iniciativas aqui ou acolá que possam ser tomadas como exemplos a seguir ou tentar. Apego-me à expectativa de que elas existam e a minha contribuição possível será conhece-las e, conforme o caso, adotá-las como bandeira assumindo a luta por elas.

 

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quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Pobres que apavoram

 

Opinião

 

Brincando recentemente com a lembrança do romance “1984” de George Orwell, registrei alguns termos que chamei de Novilíngua 2023.  Uma brincadeira para ajudar a pensar a vida e o mundo contemporâneo. Narrativa; Arcabouço; Estrutural; Ancestralidade,  foram alguns deles.

Ainda no finalzinho do ano, dei de cara com o termo Aporofobia que tem sido divulgado pelo padre católico Júlio Lancellotti  praticante de ações sociais com moradores de rua na cidade de São Paulo (SP). Sem entrar nas raízes etimológicas do vocábulo, vale o significado nos termos em que tem sido divulgado pelo padre Júlio:

Aporofobia significa rejeição ou aversão aos pobres

Não se trata de uma aversão à pobreza, mas aos pobres, e o padre Julio, em suas ações para mitigar as situações de miséria dos moradores de rua, também tem denunciado veementemente a Aporofobia.

As pregações do padre têm tido repercussões, ao ponto da Câmara de Vereadores da cidade de São Paulo, em dezembro último, num ato de escrotice extrema, ter aprovado um pedido de comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar organizações não governamentais (ONGs) que atuam na região da Cracolândia, mas cujo objetivo principal  – não é novidade – é constranger a atuação do padre Julio Lancellotti

O padre Julio parece estar cagando para a possível CPI. Já declarou que nem trabalha em ONG, que faz  trabalho da Arquidiocese, a Pastoral do Povo da Rua de São Paulo. A Arquidiocese,  por sua vez, já se manifestou oficialmente criticando a iniciativa do pedido de CPI.

Um termo, um vocábulo, não aparece na língua vindo do nada, ele é praticado enquanto faz sentido na sociedade onde circula. Não é um fato novo  a existência entre nós de pessoas que manifestam sua aversão aos pobres sem demonstrar aversão a pobreza. É tão comum que até se faz caricaturas disso.

Um personagem de sucesso na TV , Caco Antibes, fazia a caricatura da Aporofobia - “ Tenho horror a pobre!“ - era o bordão do personagem interpretado pelo ator Miguel Falabella. E em minha infância, ainda na era do rádio e antes da TV, o programa "Balança, mas não cai!" divertia as pessoas com a dupla caricata: Primo Rico e Primo Pobre interpretada pelos atores Paulo Gracindo e Brandão Filho, respectivamente.

A sociedade tem instituído alguns constrangimentos às piadas de humor com homossexuais,  negros, gordos e carecas,  que antes eram caricaturas comuns no anedotário  público, e hoje são politicamente incorretas. Porém, ainda não há constrangimentos para as exposições caricatas da Aporofobia.

Muitos implicam com o chamado politicamente incorreto. Não me excluo. Busco me corrigir, mas não é uma reação espontânea, é elaborada. Acredito que o incômodo desaparecerá com o fim da minha geração, as que virão reagirão melhor. Mas, o fato é que o constrangimento representa um estado de amadurecimento cívico e social. Sabemos a origem das proibições, e a contrapartida é que elas carregam consigo uma vontade de desmontar visões preconceituosas e, consequentemente, discriminatórias.

Enquanto isso segue a realidade social com seus conflitos e, felizmente, existem padres Julios para pregar a distinção entre pobres e pobreza, adentrando em espaços onde a militância tradicional nem mesmo se atreve, e fazendo suas mensagens ressoarem com tal potência que chega a abalar e apavorar canalhas com armaduras de mandatos parlamentares que além de aporófobos são padrejuliófobos.

Em tempo: continuarei registrando termos da Novilíngua, agora 2024.

 

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segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

O fim da vida, sem direito a Bis

Opinião

 

Nas primeiras linhas, do primeiro capítulo, da primeira seção do primeiro volume da sua obra O Capital, há mais de um século e meio, Karl Marx escreveu assim:

“A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma “enorme coleção de mercadorias”, e a mercadoria individual como sua forma elementar” 

O sacana do Marx compreendeu, definiu e ensinou sobre o núcleo do modo de produção em que ele vivia: o modo capitalista ou capitalismo. Surpreendentemente para muitos em suas primeiras leituras, o tal núcleo não é o trabalho, nem o homem, nem a exploração, muito menos a revolução. O núcleo é a mercadoria.

No capitalismo tudo é tomado como mercadoria, se não for, não tem vez no sistema. Quem tiver alguma  mercadoria pode ir ao mercado e tentar trocá-la por outras que poderá consumir para sua sobrevivência. Quem não tiver está fora. É descartável.

E prosseguiu Marx:

“A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer. A natureza dessas necessidades – se, por exemplo, elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão. Tampouco se trata aqui de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, isto é, como objeto de fruição, ou indiretamente, como meio de produção”

(Nota: Essas traduções foram copiadas das edições de O Capital da Editora. Boitempo) 

O velho Mouro viu muito além do seu tempo. Mas, não cometamos o equívoco de imaginar que ele profetizou ou idealizou os dias de hoje. Não!  Ele não era mágico e nem fazer idealizações era a sua praia. Materialista, ele  pensava no mundo a partir das suas experiências e das realidades que conhecia e, ainda assim, ele viu o coração do sistema – a mercadoria. Aliás, esse é o título do Capítulo 1 de O Capital. Ovo em pé. Depois que alguém mostra a solução ela parece óbvia.

Hoje os jornais informam que o  estádio de futebol Morumbi será, a partir de janeiro de 2024 e durante os próximos três anos chamado de MorumBis – uma referência à marca de chocolate Bis. Um negócio de 75 milhões de reais. Alguém vendeu e outro alguém comprou o nome do estádio!

O tipo do negócio chama-se “naming rights” e a mercadoria é o “nome” do estádio. A mercadoria atende às necessidades humanas. Se elas provêm do estômago ou da imaginação – não altera em nada a questão. Essa assertiva foi estabelecida pelo Mouro há mais de 150 anos.

São muitos os exemplos de “naming rights”. Negociações similares já foram feitas pelos clubes Palmeiras e Corinthians. Em 2021 os jornais anunciaram uma crise no Metro RJ que vendeu o nome da estação Botafogo que passou a se chamar: Botafogo/Coca Cola.

Muitos comentarão com indiferença que capitalismo é isso mesmo, vida que segue, mas sem compreender ou considerar a abrangência desse modo de produção que entende tudo como potencial mercadoria.

Marx foi além. Apontou que o futuro do capitalismo é a extinção da nossa espécie, na medida em que até mesmo a natureza que viabiliza a vida humana no planeta será consumida como “mercadoria”. E tem gente que acha que a bandeira de fim do capitalismo é coisa de comunista e de sonhador inconsequente.

Superar o capitalismo é imperativo se o ser humano não quiser ser o seu próprio algoz. Tarefa de quem ainda está ou estiver por aqui. Que venha 2024!

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