Leituras para distrair
Os limites do imaginário humano são auto-impostos. Crescemos e vamos
construindo nossas barreiras, nossos muros. As vezes até de forma depressiva,
como o personagem da ópera rock “The Wall” baseada no disco de mesmo nome da
banda Pink Floyd. Mas, quando ainda crianças somos livres. Sem condicionantes
sociais, à nossa imaginação é permitido voar num sonho extraordinário que a
condição humana ainda não é capaz de compreender.
Outro dia observei um meu neto em um desses voos. Num breve percurso de
táxi, contado em minutos, ele curtiu outra viagem, imaginária. Tendo em mãos um
pequeno boneco representando um dos seus super-heróis, ele deslocava a peça de
plástico para cima e para baixo, fazendo o boneco passear pelas reentrâncias do
banco traseiro do taxi, pelo puxador da porta, pelo guarda-luvas lateral, pelo
vidro, onde fosse possível, enquanto narrava em voz alta, ignorando
completamente a minha presença, as aventuras que ele e o seu boneco estavam
vivenciando. A minha racionalidade interpretou aquele momento sem romantismo, e
até com alívio. Que bom que o moleque estava entretido. Logo chegaríamos ao
destino, sem aporrinhações.
Um ou dois dias depois, um dos meus filhos completou 41 anos. Uma data
que certamente teve significados especiais para ele, mas, aqui, estou
privilegiando os significados para mim. Então, lembrei que, quando criança, com
dois ou três anos, ainda morando em São Paulo, esse mesmo filho também fazia
viagens imaginárias similares às realizadas pelo meu neto no táxi. Os
super-heróis eram outros, nem sei quais eram, e os brinquedos infantis também
não eram os de hoje. Mas, isso não impedia a sua imaginação. O que me vem à
memória é que ele se fantasiava com parafernálias que estivessem disponíveis e
que pudessem representar os instrumentos de poder do personagem de suas
fantasias. Capas que o fizessem voar, cinturões com armas de potências
especiais etc. Ele adaptava as suas super-roupas com o que estivesse
disponível. Toalhas, panos coloridos, cordas, cintos, pedaços de qualquer coisa
que imitassem uma arma galáctica. E saía em seus voos libertadores do mundo e
de destruição dos inimigos imaginários.
Era muito legal vê-lo conquistando o universo. Mas, eu não perdia a
oportunidade da fazer piada e, em baixa-voz, e para implicar com a mãe dele – a
supermãe – eu dizia que o super-herói parecia um “Celso Cabrita”, fato que a
irritava muito porque ela entendia a intenção da piada.
Celso Cabrita foi um personagem da nossa adolescência em São Gonçalo (RJ).
Uma figura perturbada, que vagava pelas ruas da cidade, fantasiada como só uma
criança o faria. Uma caricatura de ser humano, que deve ter ficado aprisionado
em sua infantilidade, vivendo em um mundo imaginário e que, para o bem dele, a
cidade da época ainda tolerava. Com cordas envolvendo o seu corpo vestido com
uma túnica de cor cáqui (não confundir com a fruta), chapéu de abas ou do tipo
“quepe”, charuto, condecorações e outros adornos em sua indumentária, Celso
Cabrita foi figura que ajudou a compor o cenário daquela adolescência
periférica urbana que vivi, onde, felizmente, os aspectos mais atrozes da vida
social, tão banais hoje em dia, ainda estavam bem afastados.
Celso Cabrita era alvo de brincadeiras não só das crianças, mas também
dos adultos que partilhavam do mesmo espaço que ele. Ouvia chacotas e reagia
com xingamentos e impropérios. A sua agressividade era limitada. Era caricato
e, para o bem ou para o mal, o fato é que viveu em uma época e espaço quando e
onde havia tolerância – embora excludente - para com os extraviados do
comportamento social esperado. De fato, era protegido no ambiente em que
circulava, até por algumas das mesmas pessoas de quem era objeto de chacota.
Uma época que se foi. Já não existem espaços para Celsos Cabrita, embora muitos
deles existam por aí.
Ainda escrevendo esse texto, fiquei pensando sobre a causa básica dessas
reflexões. Nada concluí. O fato é que, hoje, quando vejo uma criança fantasiada
e brincando, é muito comum eu me lembrar de Celso Cabrita. Às vezes, até
comento em voz alta. Estando acompanhado, o parceiro se assusta, sem nada
entender. Mas, não daria para explicar e, de fato, nem existem interessados
nessa história. Não importa. A bem da verdade, sou eu quem estou fazendo a
minha “viagem”, como o meu neto faz no taxi. O melhor é que não me perturbem!
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