sábado, 28 de janeiro de 2017

Celso Cabrita

Leituras para distrair

Os limites do imaginário humano são auto-impostos. Crescemos e vamos construindo nossas barreiras, nossos muros. As vezes até de forma depressiva, como o personagem da ópera rock “The Wall” baseada no disco de mesmo nome da banda Pink Floyd. Mas, quando ainda crianças somos livres. Sem condicionantes sociais, à nossa imaginação é permitido voar num sonho extraordinário que a condição humana ainda não é capaz de compreender.

Outro dia observei um meu neto em um desses voos. Num breve percurso de táxi, contado em minutos, ele curtiu outra viagem, imaginária. Tendo em mãos um pequeno boneco representando um dos seus super-heróis, ele deslocava a peça de plástico para cima e para baixo, fazendo o boneco passear pelas reentrâncias do banco traseiro do taxi, pelo puxador da porta, pelo guarda-luvas lateral, pelo vidro, onde fosse possível, enquanto narrava em voz alta, ignorando completamente a minha presença, as aventuras que ele e o seu boneco estavam vivenciando. A minha racionalidade interpretou aquele momento sem romantismo, e até com alívio. Que bom que o moleque estava entretido. Logo chegaríamos ao destino, sem aporrinhações.

Um ou dois dias depois, um dos meus filhos completou 41 anos. Uma data que certamente teve significados especiais para ele, mas, aqui, estou privilegiando os significados para mim. Então, lembrei que, quando criança, com dois ou três anos, ainda morando em São Paulo, esse mesmo filho também fazia viagens imaginárias similares às realizadas pelo meu neto no táxi. Os super-heróis eram outros, nem sei quais eram, e os brinquedos infantis também não eram os de hoje. Mas, isso não impedia a sua imaginação. O que me vem à memória é que ele se fantasiava com parafernálias que estivessem disponíveis e que pudessem representar os instrumentos de poder do personagem de suas fantasias. Capas que o fizessem voar, cinturões com armas de potências especiais etc. Ele adaptava as suas super-roupas com o que estivesse disponível. Toalhas, panos coloridos, cordas, cintos, pedaços de qualquer coisa que imitassem uma arma galáctica. E saía em seus voos libertadores do mundo e de destruição dos inimigos imaginários.

Era muito legal vê-lo conquistando o universo. Mas, eu não perdia a oportunidade da fazer piada e, em baixa-voz, e para implicar com a mãe dele – a supermãe – eu dizia que o super-herói parecia um “Celso Cabrita”, fato que a irritava muito porque ela entendia a intenção da piada.

Celso Cabrita foi um personagem da nossa adolescência em São Gonçalo (RJ). Uma figura perturbada, que vagava pelas ruas da cidade, fantasiada como só uma criança o faria. Uma caricatura de ser humano, que deve ter ficado aprisionado em sua infantilidade, vivendo em um mundo imaginário e que, para o bem dele, a cidade da época ainda tolerava. Com cordas envolvendo o seu corpo vestido com uma túnica de cor cáqui (não confundir com a fruta), chapéu de abas ou do tipo “quepe”, charuto, condecorações e outros adornos em sua indumentária, Celso Cabrita foi figura que ajudou a compor o cenário daquela adolescência periférica urbana que vivi, onde, felizmente, os aspectos mais atrozes da vida social, tão banais hoje em dia, ainda estavam bem afastados.

Celso Cabrita era alvo de brincadeiras não só das crianças, mas também dos adultos que partilhavam do mesmo espaço que ele. Ouvia chacotas e reagia com xingamentos e impropérios. A sua agressividade era limitada. Era caricato e, para o bem ou para o mal, o fato é que viveu em uma época e espaço quando e onde havia tolerância – embora excludente - para com os extraviados do comportamento social esperado. De fato, era protegido no ambiente em que circulava, até por algumas das mesmas pessoas de quem era objeto de chacota. Uma  época que se foi. Já não existem espaços para Celsos Cabrita, embora muitos deles existam por aí.

Ainda escrevendo esse texto, fiquei pensando sobre a causa básica dessas reflexões. Nada concluí. O fato é que, hoje, quando vejo uma criança fantasiada e brincando, é muito comum eu me lembrar de Celso Cabrita. Às vezes, até comento em voz alta. Estando acompanhado, o parceiro se assusta, sem nada entender. Mas, não daria para explicar e, de fato, nem existem interessados nessa história. Não importa. A bem da verdade, sou eu quem estou fazendo a minha “viagem”, como o meu neto faz no taxi. O melhor é que não me perturbem!


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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Bento Carneiro e o eleitor brasileiro

Opinião


Recebi o que seria a cópia de uma mensagem endereçada ao “povo do Rio de Janeiro” onde estavam relacionados cerca de dez hospitais da cidade e arredores, além de citar genericamente as UPAs. Após o nome da cada hospital havia a expressão “FECHADO”.

A mensagem dizia que o “povo” do Rio de Janeiro não devia reclamar porque “vocês”, dizia o texto “lotaram o Maracanã, ... foram assistir aos jogos Olímpicos, ... festejaram o Réveillon em Copacabana e ... irão lotar a Sapucaí”. Concluía ironizando que “tudo estava na mais perfeita ordem” e pedia aos leitores que repassassem a mensagem para as pessoas do Rio de Janeiro.

Esse tipo de mensagem é recorrente e revela um autoritarismo que já seria bastante para desconsiderá-la. Alguém cujo voto foi vencido, não importa a sua opção política, volta-se raivosamente contra os que votaram na candidatura vitoriosa, desqualificando o voto do outro que teria votado “errado”.  Ainda raivosamente, tal e qual o personagem imortal do humorista Chico Anísio, “Bento Carneiro, o Vampiro Brasileiro”, o autor roga uma praga, lança uma “mardição” para os eleitores. Vocês vão ver!

No caso específico eu também gostaria que o resultado eleitoral fosse outro. Mas, não dá para bancar o Calunga, fiel escudeiro de Bento Carneiro. Esse tipo de atitude anda de braços dados com as ações golpistas. As pessoas vão ao Maracanã, ao Museu do Amanhã, ao Réveillon em Copacabana e à Sapucaí porque são festas bonitas, trazem  felicidade para elas e, afinal de contas, foram construídas com o dinheiro delas. Bom seria que outras fontes de felicidade também existissem ou funcionassem, por exemplo, as unidades hospitalares que estão fechadas em decorrência de roubo da coisa pública.

Embora algumas pessoas, que refletiram e fizeram conexões entre as situações, protestem em favor de uma, boicotando os eventos associados à outra, o que é um procedimento correto, uma ação política positiva e que deveria ser frequente, apontar as pessoas que ainda não atingiram esse amadurecimento político como culpadas porque os seus candidatos não cumpriram as suas promessas não faz sentido. É um comportamento medíocre e tacanho.

Ninguém vota nem escolhe o seu candidato pensando “votarei nesse porque ele vai me fuder!”. Também não conheço qualquer candidato que se apresente dizendo “vote em mim porque eu vou botar no seu cú!”.

As pessoas votam pensando que estão fazendo a melhor escolha para si naquele momento. Há uma minoria que distingue com clareza as candidaturas e que vota mesmo sabendo que suas propostas são enganosas e que não contemplarão o desejo da maioria dos eleitores. Porém, todas votam buscando o melhor para si, e a maioria vota acreditando nas mensagens que receberam dos candidatos e nas conclusões que tiraram. Se elas são vítimas de propagandas enganosas de candidaturas canalhas é outro caso.

Pensar que uma população inteira votou sabendo que seria enganada é uma presunção. Uma arrogância babaca de quem acha que todos estão errados e malucos, só ele tem razão e discernimento. Quem faz essa avaliação é o mesmo fulano que diante de um roubo, um furto, reage apontando a vítima como culpada porque deixou a bolsa aberta ou a carteira dando sopa. Posso estar enganado, mas geralmente são covardes que fogem da responsabilidade de acusar diretamente o ladrão.

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quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

En una Noche de Reyes


Opinião

Na virada do ano 2016 para 2017, em Campinas – SP, um assassino matou covardemente 12 pessoas, incluindo a ex-mulher e o filho de oito anos de idade, suicidando em seguida. Entre as vítimas nove eram mulheres, e o criminoso deixou uma carta que, se não estivesse associada à chacina que praticou, talvez passasse como um dos muitos manifestos machistas que povoam a web divulgados por um pensamento reacionário que tem encontrado espaço político para a manifestação dos seus preconceitos. Salvo trechos específicos em que escreve sobre o gesto que veio a praticar, as opiniões do assassino não diferem muito de juízos discriminatórios que tem sido propagandeados inclusive por autoridades com mandato parlamentar.

Fatos assim demonstram que, embora distante de alguns de nós, muitos são os brasileiros cujos cotidianos são verdadeiros tormentos decorrentes de desigualdades e preconceitos. Para os quais a opressão social não é apenas uma referência a ser combatida em tese, mas um inimigo real e concreto que precisa ser enfrentado a cada dia, desde o momento em que despertam. São fatos apontando-nos que o machismo, com sua prática trágica e absurda de violência contra a mulher, está e  sempre esteve bem mais próximo do que imaginamos.

Foi um antigo companheiro de turma no curso de engenharia, na UFF (Niterói), e com quem tive a oportunidade de trabalhar em nossos primeiros anos de profissão, quem me levou ao registro dessas notas. Trabalhando juntos e frequentando um curso de pós-graduação na USP – São Paulo (que nunca concluí), era uma diversão quando eu cantarolava trechos de uma canção que provocava nossos risos e piadas. Era um tango argentino que, ainda criança, ouvia da minha madrinha/avó e que narrava a seguinte tragédia: um sujeito que construiu família com mulher e  filho,  numa certa “Noite de Reis”, deu um flagra na patroa com um fiel amigo, e matou os dois. A letra era o lamento do assassino relatando a sua dor de corno, a sua reação assassina, e a incompreensão do seu filho que nas Noites de Reis ainda deixava os sapatinhos na janela esperando pela mãe que nunca voltaria porque fora morta por seu pai alegando que ela era falsa e canalha. Claro, era um tradicional tango argentino.

A “Noite de Reis” é a noite do dia 05 para o dia 06 de janeiro, data que marca o fim dos festejos natalinos. Na tradição espanhola as crianças deixam os sapatos nas janelas, com punhados de capim para alimentação dos camelos do Reis Magos e na expectativa de algum presente em troca. Daí a presença dos sapatinhos na letra da música. O tango que minha madrinha cantarolava foi um sucesso gravado pelo famoso Francisco Alves, o Rei da Voz. Era versão da gravação do bem mais famoso “argentino” Carlos Gardel. Talvez porque tivesse ouvido ambas as gravações, ela repetia um portunhol que eu me esforçava por entender e que certamente foi um elemento adicional de fascínio e que impressionou a minha memória. Minha madrinha cantarolava no final dos anos 50 e início dos anos 60 algo que ouviu em sua juventude, um tango cuja gravação original é dos anos 20. As brincadeiras e comentários que eu e meu amigo fazíamos quando eu cantarolava trechos que lembrava ou inventava ocorreram nos anos 74 e 75. O fato maior é que “Noche de Reyes” se tornou um dos símbolos de lembrança da convivência camarada que construímos e que experimentamos e que se transformou na querida amizade de hoje.

Recentemente conversamos sobre esse assunto, e nesta semana ele enviou uma mensagem lembrando que estamos em vésperas da Noche de Reyes de 2017, e solicitando que eu elaborasse algum texto relacionado ao “nosso tango”. Nunca assumi competência para realizar a tarefa, mas coincidentemente ocorreu o crime tenebroso em Campinas e aproveitei o mote para fazer esse registro, até como um exercício de expurgo do mal estar que esse evento despertou em mim, sem reduzir a sua importância é óbvio.

Aprendi a não estranhar as ações humanas de caráter bestiais. Nem que as tragédias decorrentes, incluindo suas causas e consequências, sejam registradas por recursos diversos disponíveis para a memória de uma época. Nem, ainda, que os relatos dos fatos se transformem em produtos de comercialização e consumo. Trata-se de um complexo imbricamento de relações difícil de ser modificado. A dor de corno de Menelau foi catalisadora da tragédia da guerra de Troia 1300 anos A.C. E as principais  narrativas dos supostos fatos e seus mitos vieram a ser elaboradas 500 anos depois das ocorrências e persistem até hoje, mais de 3000 anos após a bela Helena ter decorado com chifres a cabeça do rei espartano.

Desculpem-me pela opinião sem o devido rigor histórico, mas sob alguns aspectos não haverá muita diferença entre a venda como produto de consumo das narrativas da Ilíada e da Odisseia e a venda da dor de corno registrada no tango de Gardel e reproduzido com sucesso no Brasil pelo Chico Alves, há 80 anos. E acho que há chances enormes do mesmo ocorrer, em algum futuro, com os fatos da chacina de Campinas.

Contudo ou apesar de tudo, entendo que a obrigação da nossa geração é intervir para não deixar que esses acontecimentos sejam registrados apenas como fatos banais e folhetinescos, ainda que trágicos. É nossa obrigação deixar marca indelével que eles também são fatos absurdos, inaceitáveis, extraordinários e repudiados, ainda que ocorram como impulsos da nossa condição humana.

Recorrendo à poesia do outro Chico, o Buarque, em sua mensagem aos “Futuros Amantes”, vamos deixar para os escafandristas que, quem sabe, um dia explorarão nossas cidades submersas, os vestígios que queremos que identifiquem a nossa estranha civilização. Vamos deixar registrado em nossos quartos, em nossas coisas, em nossas almas e até em nossos desvãos que essas ações estão em sentido completamente oposto ao futuro que desejamos.

Tal postura passa por uma militância política de condenação e rejeição sem qualquer condescendência, e sem deixar qualquer espaço para argumentação ou justificativa de um pensamento que se avoluma nos dias de hoje e que agrega em bandeiras políticas o machismo, a homofobia, a intolerância religiosa e outros tantos fatores de preconceitos e, consequentemente, de discriminações. E, bem mais do que isso, não basta idealizar as nossas opções. É imperativo materializá-las, praticá-las em nosso dia-a-dia. Usá-las como critérios prioritários em nossas escolhas e condicionantes para quaisquer tipo de relações que pretendamos estabelecer, sejam elas políticas, sociais ou afetivas. E de forma tão expressiva que não sejam necessários sábios para decifrá-las no futuro.

No mais, tentando aliviar o tom da conversa, resgatei três links que trazem, respectivamente, as gravações de Chico Alves e de Carlos Gardel do tango "Noche de Reyes", da autoria de Pedro M. Mafia e Jorge Curi, e também a maravilha de "Futuros Amantes" de Chico Buarque.

(Chico Alves - Acesso em 04/01/2017)
(Carlos Gardel - Acesso em 04/01/2017)
(Chico Buarque - Acesso em 04/01/2017)

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