Leituras para distrair
Há muito tempo nas águas da Guanabara,
o dragão do mar reapareceu, na figura de um bravo feiticeiro a quem a história
não esqueceu. Conhecido como navegante negro...
Estes são os versos iniciais do samba
Mestre Sala dos Mares, uma homenagem que os compositores João Bosco e Aldir
Blanc fizeram ao marinheiro João Cândido, um dos líderes da revolta da Chibata,
ocorrida em 22 de novembro de 1910. Na voz da intérprete Elis Regina a canção
tornou-se um clássico da nossa música popular, e será difícil encontrar alguém
que não saiba cantarolar os seus primeiros versos, mesmo buscando na atual
geração, quase 40 anos após a primeira gravação do samba.
Um fato que muitos não se dão conta e
que passa quase despercebido é que, além de João Cândido, o navegante negro, a
canção também homenageia outro importante personagem da nossa história, o
jangadeiro cearense Francisco Jose do Nascimento. Ele é o “dragão do mar” que
reaparece na figura de João Cândido, conforme a letra da música.
Dragão do Mar foi um novo apelido que
Francisco Jose do Nascimento, que até então era “Chico da Matilde”, recebeu de
seus companheiros porque, nos idos de 1881 até 1884, liderou os jangadeiros
cearenses que durante aqueles anos impediram o embarque e desembarque de
escravos nos portos do Ceará.
A proibição de embarque e desembarque
dos escravos foi uma decisão dos grupos abolicionistas locais adotada no ano de
1881, e foram os jangadeiros que garantiram o seu cumprimento. A ação dos
jangadeiros, que fortaleceu o movimento e os grupos abolicionistas, culminou com
a decisão da assembleia legislativa do Ceará, em 25 de março de 1884, de determinar
o fim a escravidão naquela província do império, quatro anos antes da Lei Áurea
que só foi assinada em 13 de maio de 1888.
O movimento abolicionista no Ceará e o
papel fundamental de Francisco Jose do Nascimento estão entre os importantes
fatos que infelizmente ainda não são destacados em nossa historiografia oficial
e, consequentemente, não fazem parte da nossa memória coletiva. O viés popular
do movimento destaca-o como relevante numa história que ainda é marcada por
heróis oficiais e institucionais. O movimento abolicionista naquela região
contou com uma significativa participação popular, e o movimento dos jangadeiros
é um exemplo. Trabalhadores indispensáveis para o embarque e desembarque de
qualquer material nos portos da região que deliberaram não mais transportar
escravos enfrentando o desagrado das autoridades e influentes negociantes
locais e traficantes que lucravam com o comercio negreiro.
Trata-se de uma passagem emocionante
que repercutiu em todo o país, inclusive na corte, no Rio de Janeiro, que
chegou a receber com festas o jangadeiro Francisco Jose do Nascimento. Felizmente
a história foi resgatada e documentada pelo também especial jornalista Edmar
Morel (1912 – 1989) em seu livro “Vendaval da Liberdade” (Global Editora – Rio de Janeiro, 1967). Aliás, foi também Morel quem escreveu
sobre a rebelião dos marinheiros em 1910 que ficou conhecida como Revolta da
Chibata após a publicação do seu livro com este título.
Naturalmente a formação da historiografia
oficial tem os seus mecanismos e procedimentos, e existem diversos profissionais
e estudiosos que realizam com dedicação os seus estudos e pesquisas resgatando essa
histórias “escondidas”. Porém, independentemente disto, é muito importante que
se façam mais canções, festas, filmes, novelas, peças teatrais e enredos
contando, cantando e resgatando a história popular, seus heróis, lendas e
mitos. Daí reaparecerão, quem sabe, outros dragões do mar e navegantes negros.