sábado, 31 de março de 2018

Não Acabou! Tem que acabar!


Opinião

“Não acabou! Tem que acabar! Eu quero o fim da Polícia Militar!”

Não é simples gritar essa palavra de ordem tão forte e significativa, e que foi, sem dúvida, um dos bordões mais aclamados nas manifestações decorrentes dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.

Gritar pelo fim da polícia que conhecemos é um apelo significativo não apenas para a conjuntura carioca, mas para a situação brasileira em geral. A criminalização generalizada das manifestações políticas com a consequente repressão policial em nosso país já é um fato e virou prática comum. Deixou de ser uma possibilidade, não importa o partido que esteja no comando do governo. Qualquer movimento organizado consequente está obrigado a pensar sobre como enfrentar essa realidade, especialmente aqueles que agregam as comunidades carentes que são as mais oprimidas e reprimidas pelo Estado.

Foi com essa convicção e tentando aumentar a sua divulgação, que resgatei a histórica entrevista do ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Helio Luz, figura cuja biografia é pública e conhecida [1]. Lá se vão mais de vinte anos da entrevista, ocorrida em maio de 1997, e as questões colocadas pelo ex-delegado são atualíssimas.

O objetivo de ampliar a divulgação da entrevista é provocar e estimular o exercício da nossa crítica sobre uma questão que salta de nossas gargantas como palavra de ordem nas manifestações, mas que também nos compromete com a viabilização e com as  consequências da nossa vontade.

A nossa polícia foi criada para fazer a segurança de Estado e da elite.  São palavras de Helio Luz. Seu pessoal é recrutado basicamente na periferia, o Estado tolera a sua violência na proteção ao patrimônio, paga salários irrisórios ao policial e lhe dá ordem para “se virar”.

Nesse modelo a polícia é necessariamente violenta e corrupta. Mas, ela realiza a função para a qual foi criada e, na verdade, desempenha com eficiência o seu papel – diz o ex-delegado.

O clamor por uma polícia não violenta e não corrupta significa cobrar da polícia que ela proteja a sociedade. Porém, essa cobrança está sendo feita a uma polícia que não foi criada para isso. A polícia para proteger a sociedade simplesmente não existe. Precisaria ser construída, e isso é uma reviravolta.

Então, prossegue o ex-delegado, não é necessário consumir tempo debatendo se a polícia é, ou não, violenta e corrupta. Essa questão já está respondida afirmativamente. A polícia é violenta e corrupta. O avanço seria transformar essa polícia, o que não é algo simples, embora seja viável. Porém, para tal mudança é necessário que, preliminarmente, a sociedade responda a si própria se, de fato, há interesse em uma polícia não violenta e não corrupta.

A questão da violência parece não trazer dúvidas sobre a vontade social, mas no caso da corrupção, há contradições. O delegado questiona complementando que a polícia não corrupta será aquela que não deixará o carro parar no local proibido, nem permitirá puxar fumo no Posto 9, nem deixar o pessoal cheirar em Ipanema. E os mandados serão cumpridos com o pé na porta na Delfim Moreira, como se faz em outros países. É assim que funciona a polícia no primeiro mundo, diz ele. A polícia no primeiro mundo também não é perfeita, e não é diferente da nossa em seus mecanismos de discriminações e exclusões. Essa característica não é exclusiva da polícia brasileira, afirma Helio Luz. A diferença é que no primeiro mundo a classe media está dentro da policia, o que não ocorre aqui.

Aqui, os protegidos são apenas o Estado e a elite. E é para garantir isso que a comunidade pobre é reprimida e segregada pela polícia, em vez de receber proteção. Trabalho bem feito, afirma o ex-delegado. Nem são necessários cercas de arames para essa apartação, como ocorre na África do Sul, exemplifica Helio Luz. A entrevista na íntegra pode – e deveria – ser assistida no link abaixo [2]. Vale a pena.
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[1]
Hélio Tavares Luz (03/04/1946) foi chefe de polícia do Rio de Janeiro (1995 -1997) no governo Marcello Alencar (PSDB). Em setembro de 1997, seis meses após a entrevista citada nesse blog, ele foi afastado do cargo por se deixar fotografar ao lado de policiais que questionavam plano de cargos e salários.  Elegeu-se deputado estadual no Rio de Janeiro, pelo Partido dos Trabalhadores (PT), entre 1999-2002, mas deixou o PT em 2002 por discordar de "procedimentos internos do partido". Atualmente está aposentado.

[2]
Link para entrevista com o deputado Helio Luz – Acesso em 31/03/2018.
 
Essa entrevista de Helio Luz foi a base de um documentário intitulado “Notícias de Uma Guerra Particular”, de João Moreira Sales. Recentemente, em fevereiro de 2018, uma matéria da BBC Brasil resgatou a entrevista de 1997 e fez nova entrevista recolhendo as impressões do ex-delegado sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro. O texto da entrevista da BBC está em <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43207272> Acesso em 31/03/2018.



terça-feira, 27 de março de 2018

Espaço no adesivo


Opinião

Duas pessoas foram assassinadas no Rio de Janeiro e uma terceira sofreu pequenas lesões de estilhaços, além do trauma emocional. Entre os mortos, uma das vítimas foi o alvo de um homicídio programado e planejado contra uma figura pública. Uma representante popular, uma vereadora cujos posicionamentos políticos colidiam frontalmente com interesses de certos grupos e que diziam respeito exatamente ao cenário de preconceito, discriminação e violência contra grupos sociais representados pela vereadora. A outra vítima foi um trabalhador que estava cumprindo a sua tarefa e circunstancialmente servia de motorista para a vereadora no momento dos assassinatos.

O evento provocou comoção geral com mobilizações e manifestações de repúdio, no país e no exterior, e de cobranças de ações e providências das autoridades responsáveis por identificar e punir os autores da chacina.

Os muitos movimentos e mobilizações têm focado os dois assassinatos, mas notadamente as palavras de ordem de registro e cobranças de providências nos cartazes, faixas, botões, adesivos etc. têm se referido ao fato valorizando o nome da vereadora e colocando em segundo plano o do motorista também assassinado. Essa situação tem gerado polêmicas e cobranças entre a própria militância, sob o argumento que se trata de uma discriminação indevida não citar a cada instante e em toda a oportunidade o nome do motorista ao lado do nome da vereadora, ambos assassinados. A propósito, uma crítica apropriada por alguns que buscam desqualificar as manifestações.

Uma justificativa recorrente é remeter aos sentimentos dos familiares do motorista e de tantos outros vitimados pela violência caótica na cidade do Rio de Janeiro. Na mesma linha argumentam os familiares de policiais também vitimados e cujas desgraças não despertam tantas emoções como foi o caso da vereadora.

Para mim não faz sentido tentar comparar as tragédias humanas que significaram essas duas mortes e as tantas outras. Ao mesmo tempo, entendo que o fato político é distinto da tragédia humana, embora não seja mais nem menos grave ou importante. Mas, é distinto. A enorme repercussão do fato se deu, infelizmente, por conta do simbolismo político da vereadora. Não fosse esse simbolismo ambas as mortes estariam contabilizadas como mais duas entre as tantas tragédias que ocorrem na cidade, e que, inclusive, já ocorreram após o duplo assassinato.

Não deveria estranhar que os apelos se façam em nome da morte da vereadora, mais do que em nome do motorista, pelo fato de se tratar de uma questão de comunicação, de amplificação dos canais de transmissão das informações para um maior alcance das denúncias. E será por esse canal de grande alcance e de maior capacidade que fluirão as denúncias do assassinato da própria vereadora, do motorista assassinado e de tantos outros casos que também decorreram dos embates que levaram aos assassinatos em pauta.

Ambas as vítimas terão os seus nomes clamados nas oportunidades que houver, mas será um estreitamento da visão não compreender que em outras situações as referências serão efetivamente simbólicas porque o símbolo carrega em seu conteúdo um conjunto enorme de informações e conceitos, e o símbolo, circunstancialmente é o nome da infeliz vereadora, não é o nome do também infeliz motorista.



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sexta-feira, 16 de março de 2018

Para Marielle e Anderson


Opinião
Impossível conter a emoção. Duas vidas que se foram. Tristeza e luto para os seus familiares, amigos e companheiros próximos de luta e militância. Mas, os assassinatos da vereadora carioca e do seu motorista também são uma lição para os demais militantes que partilhamos dos mesmos ideais de luta. É assim que o sistema reage quando sente que batemos forte. E não nos iludamos, só avançaremos batendo forte. Já está claro que, nesse processo, a apregoada democracia é o primeiro valor que a reação manda para o espaço e que a tentativa de eliminação política é ato recorrente. Mas, quando conseguimos levar a disputa para as ruas, num campo onde as máscaras já não disfarçam as intenções, então a coisa muda. A reação parte para a eliminação física. Foi isso que aconteceu com a companheira vereadora Marielle e, consequentemente, com o motorista Anderson cujo trabalho era realizar o seu trasnsporte.

A dor amanheceu em nossa porta. A enorme quantidade de pessoas que se concentrou em frente à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro desde a manhã de hoje, 15/03/2018 e, mais tarde, em frente à Assembleia Legislativa atendeu com garra às palavras de ordem que apelavam os nomes de Marielle e  Anderson, mas também com grande dificuldade. Responder “Presente!” e “Sempre!” não foi simples, na medida em que muitos dos gritos de resposta foram embargados por choros contidos de integrantes de uma multidão visivelmente emocionada, apesar de coesa pelo desejo de transformar a nossa realidade.

Façamos desse fato uma reflexão sobre ocorrências similares pelo Brasil a fora e que, embora gravíssimas, não repercutem como os fatos do Rio de Janeiro, nem nos emociona tão fortemente, porque ocorrem distantes do nosso cotidiano, em ambientes que para nós são quase não lugares.

Outros companheiros tem sido assassinados em rincões do país onde enfrentam jagunços e milícias, quando não se deparam com a própria força policial estatal que realiza sem constrangimentos o papel de cães de guarda de sistemas corruptos. São muitos os casos onde trabalhadores são obrigados a assistir a degradação emocional, a tortura e até a eliminação física de outros que se destacam como líderes em suas reivindicações. Situações que, para nós, aparecem como fatos distantes, geralmente com narrativas filtradas por  editorias de jornais  que banalizam os acontecimentos. Devemos imaginar a dor daqueles companheiros como aquela que sentimos hoje.

O evento do Rio de Janeiro é uma lição. Nós estamos com a razão, embora sejamos vulneráveis, mas não estamos sós. A identificação política que se expressou, hoje, na Cinelândia e na Praça XV vai bem além do Rio de Janeiro, e deu mostras que há um núcleo de identificação política e cultural que pode nos permitir avançar para uma sociedade melhor. Mas, é preciso seguir em frente batendo forte e metendo os dedos nas feridas. Essa será a maior homenagem que poderemos prestar a esses tantos companheiros que sofreram duras penas por não se dobrarem e imporem os seus direitos e as suas reivindicações.

Companheiros militantes da liberdade e da solidariedade! Presentes! e Sempre!


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domingo, 11 de março de 2018

Ganhe o seu dia – leia Chomsky.

Opinião

Esse gigante político que marcou sua presença de forma indelével no século XX continua apaixonando os militantes da esquerda – eu entre eles. Quem quiser conferir veja a entrevista recente publicada no jornal El Pais em 10 de março, último: Noam Chomsky: “As pessoas já não acreditam nos fatos”.

Recentemente recebi uma charge com os dizeres “ Coxinha macho mesmo larga o apartamento e vai morar na favela. Lá tem tudo que ele adora: Estado mínimo e intervenção militar”. A charge soa como piada, mas vejam o pronunciamento do Chomsky:

P. Então o neoliberalismo triunfou?

R. O neoliberalismo existe, mas só para os pobres. O mercado livre é para eles, não para nós. Essa é a história do capitalismo. As grandes corporações empreenderam a luta de classes, são autênticos marxistas, mas com os valores invertidos. Os princípios do livre mercado são ótimos para ser aplicados aos pobres, mas os muito ricos são protegidos. As grandes indústrias de energia recebem subvenções de centenas de milhões de dólares, a economia de alta tecnologia se beneficia das pesquisas públicas de décadas anteriores, as entidades financeiras obtêm ajuda maciça depois de afundar… Todas elas vivem com um seguro: são consideradas muito grandes para cair e são resgatadas se têm problemas. No fim das contas, os impostos servem para subvencionar essas entidades e com elas, os ricos e poderosos. Mas além disso se diz à população que o Estado é o problema e se reduz seu campo de ação. E o que ocorre? Seu espaço é ocupado pelo poder privado, e a tirania das grandes corporações fica cada vez maior.

E para aqueles que ainda olham estupefados a guinada para a direita ocorrida na ordem política brasileira pós-mandatos populares de Lula e Dilma, veja uma situação na pátria liberal, os EUA,  sob a óptica do Chomsky .

P. Acha possível que se repita o que ocorreu nos anos trinta?

R. A situação se deteriorou. Depois da eleição de Barack Obama se desencadeou uma reação racista de enorme virulência, com campanhas que negavam sua cidadania e identificavam o presidente negro com o anticristo. Houve muitas manifestações de ódio. No entanto, os EUA não são a República de Weimar [democracia alemã anterior ao nazismo]. Precisamos estar preocupados, mas as probabilidades de que se repita algo assim não são altas.

E por aí vai. Quem se interessar leia a entrevista, na íntegra, no link abaixo. Sugiro que o façam: 

<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/06/cultura/1520352987_936609.html>  Publicada em 10/03/2018  - Acesso em 11/03/2018.

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