sábado, 27 de junho de 2015

Comunidade

Vizinhos

Um dos meus vizinhos é uma comunidade, mas não estou usando eufemismo para o termo favela. O meu vizinho é a Comunidade Evangélica Internacional da Zona Sul - CEIZS, uma igreja evangélica cuja sede mundial é localizada na área térrea do meu prédio e que tem unidades no Rio de Janeiro, Curitiba, Foz de Iguaçu e São Paulo, além de unidades nos EUA, Suiça, Itália, Inglaterra e Portugal. A igreja funciona em um espaço que já foi o cine Bruni Flamengo e onde, em dezembro de 1964, durante uma sessão noturna, explodiu uma bomba que deixou feridos graves e cuja responsabilidade foi atribuída, pelo governo militar, a “terroristas” que contestavam o regime (A bomba do Riocentro ocorreria 17 anos depois, em 1981).

O Bruni foi desativado em 1975 e substituído por duas salas, também de cinema, os Lido I e II destruídas por um incêndio em 1990. Seguindo uma lógica  recorrente na cidade e no resto do país, o local foi adquirido e restaurado pela Comunidade que o transformou em templo, sede da igreja.

As relações entre Comunidade e o nosso condomínio são cordiais, embora com alguns conflitos. Afinal, qual vizinho que promovesse festas semanais com a presença de centenas de convidados não perturbaria os demais? Trata-se de um problema cuja solução passa pela colaboração e tolerância de ambas as partes. Porém, até onde eu sei, as coisas tem caminhado sem crises graves e com altos e baixos no relacionamento,

Este vizinho tem algumas curiosidades que o destaca das igrejas tradicionais. Por exemplo, na celebração de Réveillon, em meio às festividades em Copacabana, ele também ocupa a areia da praia promovendo tendas de oração no meio daquela zona total. E nos dias de Carnaval a Comunidade desfila com um enorme bloco cuja bateria é formada por ritmistas da própria igreja, com carro de som, enredo e alas fantasiadas que vão de um extremo ao outro deste lado da quadra, e que desfila animado pelo bairro empolgando e emocionando muita gente como já testemunhei. A Comunidade é igreja, rádio, produtora musical e tem um grupo musical que adota o seu nome. A sua sede recebe pop stars nacionais e internacionais do mundo musical evangélico e o seu auditório está equipado com moderníssimo sistema de som projetado com qualidade para divulgação dos cultos/espetáculos em rede para os templos em outras partes do mundo.

Mas, algo que realmente me impressionou foi uma entrevista concedida a um blog de notícias, em 2012, pelo responsável da então recém-inaugurada filial na Florida, EUA. A propósito, também em um antigo cinema.  Segundo o pastor da unidade americana, ele realizou o seu primeiro culto para a esposa e dois filhos quando a igreja começou a funcionar em uma pequena sala na localidade de Deerfield Beach em 14 de abril de 2007.  E nas palavras do próprio pastor “Quatro anos e nove meses depois, a CEIZS Florida inaugurou uma sede suntuosa também em Deerfield Beach ... E isto tudo foi feito com uma verba de um milhão de dólares (grifo meu) arrecadada aqui. E está totalmente paga!".

Acho que não seria descabida a ideia de negociar com este vizinho para que ele assumisse a administração do nosso condomínio. Quem sabe receberíamos quotas mensais em vez de pagá-las.

######


Portaria de entrada da Comunidade - o salão/auditório é nos fundos do terreno




Até 1990 funcionavam ali os Cines Lido I e II


O bloco de Carnaval da CEIZS - esquentando os tamborins

Bloco da CEIZS - Desfile - Carro do Som e Bateria

terça-feira, 23 de junho de 2015

Aterro

Vizinhos


Em frente à minha janela está o meu vizinho mais importante. Embora o seu nome oficial seja Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, o que vale é o seu apelido:  Aterro do Flamengo, e para os íntimos apenas “Aterro”, apelido que ganhou por ser um parque construído em uma área de 1.200.000 m2 da  baía de Guanabara aterrada com o entulho retirado do desmanche de um morro próximo (Santo Antonio) e com areia retirada do fundo da própria baía.

Nesta cidade qualificada de maravilhosa porque a natureza não lhe poupou beleza, o meu vizinho constitui possivelmente a mais expressiva beleza não natural do Rio de Janeiro. É uma construção humana que se estende desde o aeroporto Santos Dumont até a enseada de Botafogo, e inclui jardins, parques, quadras e pistas de esportes, campos de futebol, quiosques, o Museu de Arte Moderna, a Marina da Gloria, o Monumento aos Pracinhas, o Monumento ao fundador da cidade, Estácio de Sá, o Museu Carmem Miranda, milhares de árvores, centenas de espécies de plantas nativas e exóticas, cerca de 100 postes para iluminação com 45 metros de altura cada. O Aterro resulta de um projeto urbanístico com uma interessante história, e se transformou  num tesouro  para os  habitantes da cidade e seus visitantes. Ele é bem servido por transporte público: ônibus. O acesso ao parque é livre, sem grades,  e a sua área para lazer é ampliada aos domingos e feriados com o fechamento das duas faixas de rolagem que integram o conjunto. Desconheço outro espaço da cidade que possa ser acessado,  ocupado, usado, admirado e vivenciado com uma deliciosa sensação de apropriação sem  exclusividade, com a sensação de se fazer parte sem ser “dono”. Usufruir sem excluir o outro. As praias do Rio de Janeiro geram sensações  similares, mas elas se incluem entre as maravilhas naturais da cidade.

É um prazer ver famílias das mais variadas origens socioeconômicas ocuparem os seus espaços nos dias de folga e descanso, sem frescuras nem protocolos babacas que caracterizam as apartações sociais. Acho até que os visitantes são poucos se comparados com a capacidade de abrigo do Aterro. São raros os domingos sem as corridas ou caminhadas nas pistas que margeiam os seus jardins. O  “futebol dos garçons” que diariamente ocupa as suas quadras nas madrugadas até o raiar do dia já virou tradição.  

Meu vizinho sofre ameaças à sua integridade. Não bastassem as insuficiências dos serviços para a sua manutenção, volta e meia noticiam iniciativas visando a sua exploração comercial com atividades que descaracterizariam o seu propósito de espaço público. Já se falou em construção de shopping e até em circuito para corrida de automóveis. Essas iniciativas foram inibidas, mas as recentes concessões para o uso da marina da Gloria e os consequentes eventos programados e realizados naquele espaço afirmam uma opção pela privatização do espaço público em vez da universalização da sua ocupação. Seria um exagero de minha parte se as ameaças não estivessem aí, latentes e nem sempre veladas. Afinal, foi no início deste 2015 que uma jornalista carioca, nacionalmente conhecida e considerada, propôs descaradamente como medidas para solução de casos de violência nas praias, “... diminuir drasticamente a circulação das linhas de ônibus e de Metro no fluxo Zona  Norte – Zona Sul ...” e “... cobrar entradas nas praias de Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon ...”.


######
Panorâmica do Aterro




sexta-feira, 19 de junho de 2015

Oceano Atlântico

Vizinhos

Ele complementa a magnífica visão de outro vizinho, o Aterro do Flamengo, e eu deveria tratá-lo por “baía de Guanabara”, mas um fato cômico determinou a minha escolha. Logo que vim para a moradia atual solicitei a transferência da minha linha telefônica fixa. A atendente da operadora, que devia estar num Call Center em qualquer lugar do Brasil diferente do Rio de Janeiro, insistia para que eu complementasse o meu endereço (praia do Flamengo) com alguma outra referência, apesar de eu já ter informado número do prédio, apto, bairro, CEP etc. Aporrinhado e de saco cheio, sugeri que ela anotasse Oceano Atlântico, afinal a praia do Flamengo pertence ao mesmo. A sugestão provocou um silêncio no outro lado da linha que eu deduzi decorrer da irritação da atendente enquanto contava até dez para não mandar às favas eu e a minha ironia. Passado o silêncio, ela completou o registro da solicitação sem mais delongas. Porém, a minha surpresa foi enorme quando recebi a conta telefônica e verifiquei que, como referência para o meu endereço, estava impresso “Oceano Atlântico”. E tem sido assim, todos os meses, há anos, acreditem, ou não. A minha conta telefônica deve ter pequena possibilidade de ser extraviada para qualquer um dos outros três oceanos do planeta porque nela consta como referência para o endereço praia do Flamengo, no Rio de Janeiro: Oceano Atlântico, e foi daí que eu resolvi dar este tratamento ao meu vizinho, em vez de tratá-lo como “baía de Guanabara”.


Oceano Atlântico ou baía de Guanabara, o fato é que desfruto o privilegio dessa vizinhança. Da janela contemplo aqui, em margem próxima, desde o aeroporto Santos Dumont, a marina da Gloria, a praia do Flamengo, até os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar. Acolá, o litoral da distante Niterói, desde a Ponte, passando por suas praias urbanas até a histórica fortaleza de Santa Cruz marca da consolidação do poder imperial português. Entre as margens daqui e de lá o curiosíssimo forte Tamandaré, na ilha da Laje, que parece uma enorme tartaruga encravada no meio da baía de Guanabara e vigiando a sua entrada. O sobe e desce dos aviões passa a impressão de suaves voos panorâmicos, e a incessante movimentação das embarcações de grande porte parece um desfile ensaiado onde os veleiros e outras pequenas embarcações realizam uma espécie de dança de vai e vem. Arrisco dizer que é uma das mais belas paisagens do Rio de Janeiro. Não importa o horário ou as condições climáticas, as visões são sempre espetaculares e surpreendentes.

Gosto de imaginar os primeiros navegadores tentando identificar o que parecia ser a desembocadura de um grande rio. Penso nas disputas entre portugueses e seus desafetos lutando pela posse destes territórios, cagando e andando para os nativos obrigados a incluir entre as suas próprias disputas aqueles novos e estranhos seres. Mas, gosto também de pensar que um dia João Cândido e seus companheiros ocuparam essa paisagem comandando as embarcações capturadas em sua revolta e subjugando com os seus canhões o poder republicano e obrigando-o a abolir as punições com na marinha com o uso da chibata. Caramba! Esse vizinho tem muita historia pra contar.


Oceano Atlântico e Aterro - Visão da janela
Clique aqui para uma melhor visão da imagem




Minha conta telefônica com endereço e... referência



domingo, 14 de junho de 2015

Carequinha

Leitura para distrair

Recebi a notícia através de um amigo. O Carequinha será enredo de uma escola de samba de São Gonçalo, a Unidos do Porto da Pedra (bairro onde nasci).  Nada mais justo. Tomara que não façam uma merda. Nem precisa ganhar nada, basta que seja uma homenagem bonita, à altura do símbolo representado pela figura do palhaço.

Já repeti essa história mil vezes e resolvi registrá-la. Quando criança morávamos nos fundos da casa dos meus padrinhos que ficava na principal rua da cidade, a rua Francisco Portela, em São Gonçalo. Na mesma calçada, mais adiante, morava o Carequinha. Na casa do Carequinha não tinha garagem, mas ele tinha um carro, parecia um Citroen, preto, porém não faço ideia qual era a marca. Na traseira do automóvel, em letras metálicas, estava escrito "CAREQUINHA". 

Carequinha usava a garagem de outro vizinho, em frente à nossa casa, no lado oposto da rua. Era usual ele chegar, à noite, para guardar o carro. Depois atravessava a rua, parava para um “alô” e seguia para casa. Era comum as pessoas se reunirem nos portões para conversar, e eram todos vizinhos antigos e amigos, primeiros moradores da área. Televisão praticamente não existia, era um privilégio de poucos.

As crianças, quando permitiam, ficavam em volta, e quando Carequinha chegava sempre tínhamos curiosidade. A figura dele nada tinha a ver com a do palhaço, nem mesmo era careca, ao contrário, tinha uma vasta cabeleira preta. Porém, a voz era inconfundível. Era o Carequinha! Eventualmente ganhávamos de brinde fotos e até uns cadernos pautados, de propaganda, com a imagem do Carequinha na capa. O nome do Carequinha era George, e custei a entender porque não era Jorge. Na verdade, nem sei se algum dia entendi.

Há duas semanas, na primeira semana de junho de 2015, passei em frente à casa do Carequinha. A casa dele e a dos meus padrinhos foram as últimas daquele trecho que se mantiveram como residências. A dos meus padrinhos já não é mais, e não sei sobre a casa do Carequinha, passei por lá, mas não deu para saber.

Já adulto, no período que voltei a morar em São Gonçalo, através de um vizinho, octogenário como o Carequinha, amigo dele e também um dos primeiros moradores, fui apresentado ao palhaço como uma das crianças da década de 50, filho de fulano, neto de sicrano etc. Cheguei a trocar palavras com ele umas poucas vezes e todo o tempo que tive consumi elogiando-o.

Até onde eu sei o Carequinha teve residência por lá até a sua morte. A casa dele nunca teve garagem.