segunda-feira, 29 de março de 2021

Dia de luz, festa de sol

 Leituras para distrair

 Um amigo me sacaneou dizendo que logo eu acordasse iria teorizar sobre a influência das relações no Oriente Médio e encalhe do cargueiro no canal de Suez. Não tenho essa capacitação, mas assumo que seria um bom tema. Ainda assim, em tempo de coronavírus e na iminência de uma primeira dose de vacinação, deixei-me entrar na pilha, curtindo o tempo com o regate de algumas lembranças, longe de atender às expectativas do amigo sacana.

 Aos 16 anos conheci uma figura que estava voltando de Suez (Egito) onde fazia parte das tropas militares  brasileiras sob o comando da ONU, um conchavo internacional para garantir  o controle do canal que tinha sido nacionalizado pelo governo egípicio na década de 50 do século 20.

 As forças militares na região estavam sendo desativadas (anos 60).  Lembro da data porque na ocasião eu troquei de emprego, e o contato com aquela figura que estava voltando de Suez fez parte dos novos relacionamentos no novo ambiente.

 Eu tinha curiosidade em saber sobre o assunto porque a ignorância era total e não existiam possíveis fontes de esclarecimentos. O fulano que retornara era mais ignorante do que eu. Não fazia ideia do que esteve fazendo lá, e sentia-se confortavelmente instalado em sua ignorância. Lamentava apenas  a perda da grana que recebia e que lhe permitia coçar o saco, sem trabalhar durante certo período. Aliás, os carregadores de fubá do depósito onde eu trabalhava puseram-lhe o apelido de “Fulano 99”. Diziam que se ele continuasse assim, preguiçoso e sem fazer porra nenhuma, iria durar 99 anos.

 Na mesma época, havia conhecidos  mais velhos que estavam designados para integrar as forças militares da OEA que ocuparam a República Dominicana. A intervenção dava uma cara de legitimidade à recente invasão americana no país em nome do combate ao comunismo e para evitar o controle do poder por um governo de esquerda.

Também nesse caso a minha ignorância era absurdamente grande. Os caras que eu conhecia e que estavam por lá (São Domingos) eram todos irmãos mais velhos de colegas da minha idade. Nenhum sabia nada sobre o papel que estavam desempenhando.

O nosso interesse era grande porque os colegas recebiam cartas dos irmãos mais velhos contando as maravilhas de estarem em um local onde o sexo era abundante e com menininhas, novinhas,  que chegavam a ser oferecidas por parentes próximos, como irmãos e primos, em troca de poucos dólares. Bugigangas americanas eram compradas a preços baratíssimos, e o acesso à uísque e cigarros estrangeiros era irrestrito.

 Meninos, adolescentes, não fazíamos ideia do que representava aqueles relatos.  Cada grupo que retornava trazia pacotes de cigarros americanos,  bebidas, aparelhos eletrônicos,  dólares  e novos relatos sobre a miséria e desagregação social em um país ocupado, que para nós era o relato de um paraíso. Despertava a inveja de não poder estar lá.

 Em nossos grupos e ambientes, mesmo no colégio, não havia quem nos informasse sobre o significado daqueles fatos. ONU, Suez, São Domingos, OEA era tudo uma merda só, desconhecida. A esses termos somaram-se outros, estes mais conhecidos: Parliament, um cigarro com um filtro completamente diferente do que conhecíamos, e Half and Half,  outro cigarro que exalava um fedor que empestava todo ambiente quando aceso.

 Meu amigo sacana talvez fique frustrado, mas com as notícias do barco encalhado não vou além das lembranças daqueles tempos de ignorância e da alegria de ter superado parte delas, ainda que pequena.

 O atolamento do barco é simbólico. Estamos atolados socialmente. Contudo, se eu fosse capaz,  discorreria sobre o o ridículo e irônico daquelas imagens de uma embarcação de 400 metros, lotada de containeres, a região em volta completamente esmerdalhada pelo  congestionamento de navios, e o paredão lateral do barco pintado com letras enormes: EVERGREEN.

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segunda-feira, 22 de março de 2021

O pecado e a fome. Coisas dos home

 Opinião

O devorador de pecados é um mito. Não sei a origem, detalhes nem coisa que o valha, apenas sei sobre o mito. O devorador é alguém que, em ritual, absorve os pecados de outros e alimenta-se deles. Quem nunca soube, sugiro que busque saber.

 Sou um filho da puta!  Contudo,  tenho a alternativa de repassar os meus pecados para um devorador de pecados. Em alguma etapa do ritual, o pecador sussurra no ouvido do devorador as merdas que fez e... foda-se o resto. O devorador que cuide das consequências. 

Acho que, afinal,  esse é o fundamento do atributo de mito  concedido ao presidente Bozo. Incapaz de articular qualquer sentença lógica, seu rebanho muge numa tentativa exasperada de expiação de seus pecados que o mito devora. Alimenta-se deles. Ambos se satisfazem. Complementam-se. 

Deve ser constrangedor para o pecador, ainda que seus pecados tenham sido devorados pelo mito, tratar suas relações cotidianas: familiares, afetivas, sociais, profissionais, etc. Nos círculos próximos é inevitável que algum impertinente, infantil ou não,  pergunte: "Afinal, em quem você votou?"

Não sei como os caras respondem, no máximo faço suposições. Imagino alguém respondendo ao filho ou neto em uma mesa de refeições ou encontro de família:  “ Votei no Bozo, mas estou livre porque ele devorou meus pecados”. 

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sábado, 6 de março de 2021

Bacurau

Leituras para distrair

Trocando mensagens com um querido amigo ele usou a expressão “Comigo não, bacurau ! ”. E isso foi o mote para esticarmos conversa sobre a palavra “bacurau”. Segundo esse amigo, “... só quem tem raízes telúricas conhece e já viu o bacurau”, e ficou de recuperar uma crônica de autoria do seu avô paterno intitulada “O bacurau” que ele guarda entre relíquias da família.

 Engraçado que para a web, hoje, é preciso distinguir o termo bacurau entre a  “ave” e o “filme”. O filme é uma produção nacional de 2019 sobre um povoado do sertão brasileiro explorado por um chefe político local que chega a tirar a cidade do mapa e a contratar matadores profissionais para dizimar os moradores em nome dos seus interesses. A trama se desenvolve narrando a reação dos moradores.

 A ave é uma de hábitos noturnos que, por esse fato e sua própria aparência, às vezes é confundida com a coruja, embora não haja parentesco entre os dois tipos de pássaros. Tem um canto curioso que parece falar “amanhã eu vou!”, e há uma lenda associada ao canto do bacurau. Vale procurar saber.

Quando menino caçávamos passarinhos em um sítio/fazenda num bairro de Saigon, chamado Monjolos (para o pessoal local é Munjolos), que na época era uma vila quase isolada dos bairros populosos. Bem cedo aprendi a lidar com espingardas de “cartucho” (vários calibres)   e também de “projétil” (calibre 22). Matávamos passarinhos por motivo torpe, apenas pelo prazer de disparar contra aquele tipo de alvo.

A única regra ética que seguíamos era a proibição de atirar em “sabiá laranjeira”. Só podíamos atirar em “sabiá  poca”. Com isso, naturalmente, aprendi a distinguir um do outro. Nunca tive relação de afeição com animais e a consciência da sacanagem que era atirar nos passarinhos só veio mais tarde. Mas, no contexto de então, a prática não era considerada um absurdo. O caseiro do sítio (chamava-se Zé Magro) alimentava-se exclusivamente de caça, e alguns moradores próximos também consumiam caça, embora não regularmente.

 Um dos moleques era exímio com a “seta” (atiradeira) e batia todos os demais, não importava que armas tivessem. Ele tinha aquela habilidade desde muito criança, e os pais contavam que, certa vez, era início da noite, ele entrou correndo em casa (em Saigon) dizendo ter abatido uma coruja e contando vantagens. Os pais foram verificar e constataram que ele matou um bacurau. E esse foi o apelido que ele ganhou e que já tinha quando o conheci. Poucos sabiam o seu nome  verdadeiro e ele respondia naturalmente por Bacurau.

 Essa história transformou em ponto de honra e indicador de qualificação entre a molecada saber distinguir um bacurau de uma coruja, e não correr o risco de pagar o mico do Bacurau.

Não lembro mais o nome de batismo de Bacurau, que era primo de um falecido compadre. Quando perdi o contato, Bacurau estudava odontologia. Não sei se foi chamado de Dr. Bacurau.     

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quinta-feira, 4 de março de 2021

Flanando

 Opinião

Vou ao centro da cidade quinzenalmente e pratico as cautelas que a situação atual exige. Não sei como estão outros bairros além do meu próprio, mas o cenário do centro da cidade está difícil de qualificar. Refiro-me à região que vai desde a altura da Central e Campo de Santana,  até a Praça XV, e desde a Lapa e Cinelândia, até a Praça Mauá. O cenário é decadente, deprimente, triste. Todos esses adjetivos se aplicam. 

Ressalvo que não tenho dados que justifiquem meus comentários, mas é como a situação aparece para mim. A quantidade de lojas comerciais que, visivelmente, foram fechadas no decorrer da pandemia é enorme. O entorno da Cinelândia e Largo da Carioca, incluindo os espaços que foram criados na Av. Rio Branco,  é um enorme camelódromo. 

Excluo a rua da Carioca que já sofria um esvaziamento desde antes da pandemia. Lá, felizmente, no número 10 da rua, ainda é possível o prazer de beber algumas branquinhas especiais no “_Café do Bom Cachaça da Boa_”. Sugiro a visita. 

Os transeuntes no centro são “_muitos_”, porém poucos para quem conhece o ritmo da cidade. Quase não se vê uma moçada flanando como era habitual. São trabalhadores que precisam circular por conta de seus afazeres, assim como são os ambulantes que enchem as ruas de gritos oferecendo seus produtos e até conversando entre si. 

O sujeito da carroça de salgadinhos relata aos berros para o vendedor de capas de celulares casos e situações (geralmente associadas à violência) do bairro onde ele mora. Essa cena se repete por todo o centro da cidade. A máscara é artefato de uso dos transeuntes, são poucos os ambulantes que a usam. Todos estão correndo atrás do prejuízo, tentando seguir com suas vidas apesar da pandemia, mas os olhares por trás das máscaras ou nos rostos descobertos irradiam decadência e desesperança. 

Sempre achei o Rio de Janeiro (refiro-me ao centro da cidade) uma cidade cotidianamente bagunçada, fato que nunca me agradou.  Mas, sempre vi uma bagunça misturada com manifestações de alegria e descontração. Injustificáveis a meu juízo, mas essa é uma característica da cidade,  a cara do Rio. Hoje não vejo assim, a cidade parece estar se desmantelando. 

Preciso acreditar que em algum momento a situação se reverterá, mas arrisco dizer que nem as cervejas, nem os rastapés de blocos das ofegantes epidemias de muitos carnavais serão suficientes para tal. Será necessário algo mais. 

As notícias informam que a cidade adotará um toque de recolher proibindo as atividades comerciais noturnas e a permanência das pessoas em vias e áreas públicas durante a madrugada. Não li o instrumento legal, apenas as notícias. Não vi como será tratada a multidão que todas as noites se amontoa em áreas públicas, nas calçadas em ambos os lados da Av. Presidente Vargas, além de outras ruas, tentando abrigar-se durante a madrugada até reiniciar suas batalhas no dia seguinte. Tomara que tenham previsto uma solução que considere as necessidades daquela galera.  

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