Leituras para distrair
Um amigo me sacaneou dizendo que logo eu acordasse iria teorizar
sobre a influência das relações no Oriente Médio e encalhe do cargueiro no
canal de Suez. Não tenho essa capacitação, mas assumo que seria um bom tema. Ainda
assim, em tempo de coronavírus e na iminência de uma primeira dose de vacinação,
deixei-me entrar na pilha, curtindo o tempo com o regate de algumas lembranças,
longe de atender às expectativas do amigo sacana.
Aos 16 anos conheci uma figura que estava voltando de
Suez (Egito) onde fazia parte das tropas militares brasileiras sob o comando da ONU, um conchavo
internacional para garantir o controle
do canal que tinha sido nacionalizado pelo governo egípicio na década de 50 do
século 20.
As forças militares na região estavam sendo desativadas
(anos 60). Lembro da data porque na ocasião
eu troquei de emprego, e o contato com aquela figura que estava voltando de
Suez fez parte dos novos relacionamentos no novo ambiente.
Eu tinha curiosidade em saber sobre o assunto porque a
ignorância era total e não existiam possíveis fontes de esclarecimentos. O
fulano que retornara era mais ignorante do que eu. Não fazia ideia do que
esteve fazendo lá, e sentia-se confortavelmente instalado em sua ignorância. Lamentava
apenas a perda da grana que recebia e
que lhe permitia coçar o saco, sem trabalhar durante certo período. Aliás, os
carregadores de fubá do depósito onde eu trabalhava puseram-lhe o apelido de “Fulano
99”. Diziam que se ele continuasse assim, preguiçoso e sem fazer porra nenhuma,
iria durar 99 anos.
Na mesma época, havia conhecidos mais velhos que estavam designados para
integrar as forças militares da OEA que ocuparam a República Dominicana. A
intervenção dava uma cara de legitimidade à recente invasão americana no país
em nome do combate ao comunismo e para evitar o controle do poder por um
governo de esquerda.
Também nesse caso a minha ignorância era absurdamente
grande. Os caras que eu conhecia e que estavam por lá (São Domingos) eram todos
irmãos mais velhos de colegas da minha idade. Nenhum sabia nada sobre o papel
que estavam desempenhando.
O nosso interesse era grande porque os colegas recebiam
cartas dos irmãos mais velhos contando as maravilhas de estarem em um local
onde o sexo era abundante e com menininhas, novinhas, que chegavam a ser oferecidas por parentes
próximos, como irmãos e primos, em troca de poucos dólares. Bugigangas americanas
eram compradas a preços baratíssimos, e o acesso à uísque e cigarros estrangeiros
era irrestrito.
Meninos, adolescentes, não fazíamos ideia do que
representava aqueles relatos. Cada grupo
que retornava trazia pacotes de cigarros americanos, bebidas, aparelhos eletrônicos, dólares e novos relatos sobre a miséria e desagregação
social em um país ocupado, que para nós era o relato de um paraíso. Despertava a
inveja de não poder estar lá.
Em nossos grupos e ambientes, mesmo no colégio, não havia
quem nos informasse sobre o significado daqueles fatos. ONU, Suez, São
Domingos, OEA era tudo uma merda só, desconhecida. A esses termos somaram-se
outros, estes mais conhecidos: Parliament, um cigarro com um filtro
completamente diferente do que conhecíamos, e Half and Half, outro cigarro que exalava um fedor que empestava
todo ambiente quando aceso.
Meu amigo sacana talvez fique frustrado, mas com as
notícias do barco encalhado não vou além das lembranças daqueles tempos de
ignorância e da alegria de ter superado parte delas, ainda que pequena.
O atolamento do barco é simbólico. Estamos atolados
socialmente. Contudo, se eu fosse capaz, discorreria sobre o o ridículo e irônico daquelas
imagens de uma embarcação de 400 metros, lotada de containeres, a região em
volta completamente esmerdalhada pelo congestionamento de navios, e o paredão
lateral do barco pintado com letras enormes: EVERGREEN.
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