quarta-feira, 24 de abril de 2019

Salve Jorge ou salve-se quem quiser


Opinião

O prefeito do Rio terá razões suficientes para sorrisos de ironia. Permanentemente criticado por sua administração referenciada por concepções religiosas, ele assistiu, assim como nós, a assembleia legislativa aprovar, em 18/04/2019, um projeto de lei proclamando os santos católicos São Jorge e São Sebastião “padroeiros” do Estado do Rio de Janeiro. Como a proclamação refere-se ao estado, então ela está sendo encaminhada para a aprovação do governador.


Mesmo que o projeto pudesse ser criticado em nome da laicidade, ainda assim, caberia um projeto de lei determinando as obrigações do estado na promoção institucional de festejos e celebrações em homenagens aos referidos santos católicos. Afinal, eles contam com a devoção religiosa de parte significativa da população. Seria um ato do poder público reconhecendo essa realidade. Contudo, o projeto de lei vai além. Ele assume uma autoridade eclesial e proclama os santos católicos como “padroeiros”, ou seja, o ato legislativo atribui a São Jorge e São Sebastião a responsabilidade de intervir e proteger os interesses da população fluminense junto às autoridades e cortes celestiais. Notícias da própria Alerj informam que o projeto original estabelecia apenas São Jorge como padroeiro, mas recebeu emenda agregando o nome de São Sebastião. Mais do que isso, os deputados esperam que os santos exerçam suas influências onde puderem nas áreas do divino e do sagrado. Pelo menos é o que se deduz das justificativas do projeto porque, conforme elas, além dos atributos de mártires católicos que os levaram à categoria de santos, os referidos também são reconhecidos no Candomblé e na Umbanda por suas associações com os orixás Ode, Ogum e Oxossi. É mole?

Prédios desabando por desleixos de fiscalizações e matando seus ocupantes. Militares metralhando pretos e pobres considerados imprestáveis e descartáveis. Representantes legislativos e sindicais exterminados por combaterem violações de direitos sociais. Bacias hidrográficas quase irremediavelmente perdidas em rompimento de barragens descuidadas por seus proprietários. Mortes banalizadas. Cidades abandonadas por seus administradores são inundadas, indefesas que estão frente às intempéries. Um governo federal submisso em suas representações internacionais envergonha a nação. Ao mesmo tempo, tenta  extinguir a previdência social solidária. Viabilizar os negócios do sistema financeiro é sua meta. Tentativas de revisão buscam recuperar do lixo histórico golpistas torturadores e assassinos. A política educacional transformada em piada. Milhões de pessoas retornando para abaixo da linha da pobreza. As pérolas ministeriais se multiplicam, uma superando a outra. Desde a instituição do azul e rosa para meninos e meninas até o inqualificável diagnóstico da ministra da agricultura: o brasileiro não passa fome porque nunca tivemos guerra e porque tem muitas mangas em nossas cidades. Nesse cenário desabrochou o brilhantismo político dos deputados fluminenses. Apelar para os santos: “Proclamamos-vos, São Jorge e São Sebastião, padroeiros do Estado do Rio de Janeiro. É com vocês!”

Definitivamente, não somos uma nação para principiantes. A proposta – pasmem – foi encaminhada em conjunto por um deputado do PT e outro do PSL. E, pasmem mais um pouco. A tal emenda que enfiou São Sebastião de contrabando no projeto foi da autoria de um deputado do PSDB. Eu não tenho os detalhes, mas considerando o resultado, será interessante verificar quem aprovou essa coisa. Só pensar nisso causa arrepios. E pensam que acabou? Já disse que aqui não é para principiantes. Essa coisa foi proposta, aprovada e enviada para a assinatura do governador em regime de URGÊNCIA.

Tento imaginar o que as divindades estarão pensando. Mais trabalho sem poderes adicionais. Suponho que São Sebastião não se sentirá satisfeito. Os deputados aumentaram a sua jurisdição, que antes era só a cidade do Rio de Janeiro, sem acrescentarem recursos. Deverá virar-se com os que já possui. Quanto a São Jorge, pelo menos agora terá uma credencial, ele que tem protegido os cariocas na informalidade. Mas, dificilmente isso lhe renderá homenagens maiores do que as que lhe prestam hoje.  De qualquer forma, a julgar pelas justificativas dos deputados, agora um e outro serão cobrados, não apenas por suas intermediações nas esferas celestiais, mas também por seus prestígios e poderes nas bandas de Aruanda.

Outros santos certamente terão suas avaliações. Padroeiros de outros municípios do Estado do Rio gostarão de dividir tarefas com São Jorge e São Sebastião. Poderão concentrar suas energias naquelas que forem de caráter local. Sei que é uma opinião otimista. O Brasil também tem dois padroeiros e isso parece que não tem ajudado tanto. Eu achava que a padroeira do país era N. Sra. Aparecida e pronto. Mas, aprendi que há um São Pedro de Alcântara com o mesmo cargo e responsabilidades da santa. Sua proclamação decorreu da devoção da família real portuguesa. Lá pelos idos de 1800 a monarquia pediu e o papa decretou. Como se vê, coisas da política. Apesar disso, parece que quem tem segurado a barra é a santinha preta. Branca em sua origem, mas enegrecida simbolicamente por uma força cultural que muitos tentam negar.

Não faço proselitismo ateu nem agnóstico. Muito menos negarei a existência das bruxas. As divindades, se puderem, farão muito bem protegendo as populações, seja nos limites do burgo carioca, no âmbito do estado ou quanto consigam. Alguns mais atarefados. São Jorge, por exemplo,  sei que tem lá seus compromissos com a proteção dos britânicos. Mas, é nojento ver aqui, na Alerj, o PT, PSL e PSDB reunidos nesse conluio metafísico, escroto, populista e alienante, ao mesmo tempo em o governo federal tenta a destruição de direitos previdenciários conquistados com tanta luta pela sociedade brasileira, particularmente pelos trabalhadores. Ontem, dia de São Jorge, o dragão estava solto na Comissão de Constituição e Justiça, no Congresso, em Brasília.

Mas, nojo não significa desesperança nem decepção. Que sejam cantados louvores gospels, celebradas  missas e procissões. Incineradas velas. Ofertadas flores, ebós ou despachos. De minha parte espero que as respostas dos padroeiros venham sob a forma de força, união e energia para transformar essa realidade na marra e nas ruas. Em manifestações públicas. Em agitações e paralisações. Numa forte e consistente greve geral que sirva de estímulo e motivação para tantas outras.

No mais, desejo como Teresa Cristina e Argemiro da Portela: ... que nunca me faltem flores para agradecer amores que Oxum vive a me dar.
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segunda-feira, 15 de abril de 2019

Nossa senhora


Opinião


Quando li o romance Notre Dame, de Vitor Hugo (Clube do Livro), fiquei surpreso. Ignorante, até então eu queria saber era da história do corcunda. Aí descobri que o romance tratava da  catedral. O lance do corcunda Quasímodo e que levou a obra para o mundo foi extraído do romance por algum brilhante novelista.

Conheci a catedral, mas sem a atenção devida – passeio turista. Hoje (15/04/2019)  a porra da igreja pegou fogo. Senti tristeza. Apesar de tanta merda acontecendo por aqui, o incêndio real da igreja funcionou como uma representação metafórica de tudo importante que está queimando em volta da gente.

Famílias estão sendo fuziladas porque se enquadram no perfil de pobres e pretos. Professores truculentamente retirados de sala de aula e aprisionados porque são identificados como agitadores comunistas. Direitos adquiridos com tanta luta estão sendo extintos em nome de um modelo econômico que nada significa para a maioria da população. Tá foda!

Mas, não tomemos como novidade. O grande professor Florestan Fernandes apontava: não será fácil a revolução proletária. Precisaremos dar cabo à revolução burguesa que, para preservar suas conquistas e, ao mesmo tempo, bloquear a revolução proletária, abriu mão de conquistar todo o seu espaço histórico. Só o fez nos países centrais.  Além do mais, a pressão que enfrentaremos do aparato capitalista será incomparavelmente maior que aquela enfrentada pela burguesia em sua revolução para superar o sistema feudal [1]

Enfim, com ou sem Notre Dame, não tenho receitas. Apenas a certeza que não há caminho para uma sociedade solidária sem a superação total do capitalismo. Isso será uma revolução. Uma revolução socialista e comunista. ###

[1]
Fernandes, Florestan - O que é revolução - Ed. Expressão Popular - SPaulo - 2018