Opinião
Na virada do ano 2016
para 2017, em Campinas – SP, um assassino matou covardemente 12 pessoas,
incluindo a ex-mulher e o filho de oito anos de idade, suicidando em seguida.
Entre as vítimas nove eram mulheres, e o criminoso deixou uma carta que, se não
estivesse associada à chacina que praticou, talvez passasse como um dos muitos
manifestos machistas que povoam a web divulgados por um pensamento reacionário
que tem encontrado espaço político para a manifestação dos seus preconceitos.
Salvo trechos específicos em que escreve sobre o gesto que veio a praticar, as
opiniões do assassino não diferem muito de juízos discriminatórios que tem sido
propagandeados inclusive por autoridades com mandato parlamentar.
Fatos assim
demonstram que, embora distante de alguns de nós, muitos são os brasileiros
cujos cotidianos são verdadeiros tormentos decorrentes de desigualdades e
preconceitos. Para os quais a opressão social não é apenas uma referência a ser
combatida em tese, mas um inimigo real e concreto que precisa ser enfrentado a
cada dia, desde o momento em que despertam. São fatos apontando-nos que o
machismo, com sua prática trágica e absurda de violência contra a mulher, está
e sempre esteve bem mais próximo do que imaginamos.
Foi um antigo
companheiro de turma no curso de engenharia, na UFF (Niterói), e com quem tive
a oportunidade de trabalhar em nossos primeiros anos de profissão, quem me
levou ao registro dessas notas. Trabalhando juntos e frequentando um curso de
pós-graduação na USP – São Paulo (que nunca concluí), era uma diversão quando
eu cantarolava trechos de uma canção que provocava nossos risos e piadas. Era
um tango argentino que, ainda criança, ouvia da minha madrinha/avó e que
narrava a seguinte tragédia: um sujeito que construiu família com mulher e
filho, numa certa “Noite de Reis”, deu um flagra na patroa com um fiel
amigo, e matou os dois. A letra era o lamento do assassino relatando a sua dor
de corno, a sua reação assassina, e a incompreensão do seu filho que nas Noites
de Reis ainda deixava os sapatinhos na janela esperando pela mãe que nunca
voltaria porque fora morta por seu pai alegando que ela era falsa e canalha.
Claro, era um tradicional tango argentino.
A “Noite de Reis” é a
noite do dia 05 para o dia 06 de janeiro, data que marca o fim dos festejos
natalinos. Na tradição espanhola as crianças deixam os sapatos nas janelas, com
punhados de capim para alimentação dos camelos do Reis Magos e na expectativa
de algum presente em troca. Daí a presença dos sapatinhos na letra da música. O
tango que minha madrinha cantarolava foi um sucesso gravado pelo famoso
Francisco Alves, o Rei da Voz. Era versão da gravação do bem mais famoso
“argentino” Carlos Gardel. Talvez porque tivesse ouvido ambas as gravações, ela
repetia um portunhol que eu me esforçava por entender e que certamente foi um
elemento adicional de fascínio e que impressionou a minha memória. Minha
madrinha cantarolava no final dos anos 50 e início dos anos 60 algo que ouviu
em sua juventude, um tango cuja gravação original é dos anos 20. As
brincadeiras e comentários que eu e meu amigo fazíamos quando eu cantarolava
trechos que lembrava ou inventava ocorreram nos anos 74 e 75. O fato maior é
que “Noche de Reyes” se tornou um dos símbolos de lembrança da convivência
camarada que construímos e que experimentamos e que se transformou na querida
amizade de hoje.
Recentemente
conversamos sobre esse assunto, e nesta semana ele enviou uma mensagem
lembrando que estamos em vésperas da Noche de Reyes de 2017, e solicitando que
eu elaborasse algum texto relacionado ao “nosso tango”. Nunca assumi
competência para realizar a tarefa, mas coincidentemente ocorreu o crime
tenebroso em Campinas e aproveitei o mote para fazer esse registro, até como um
exercício de expurgo do mal estar que esse evento despertou em mim, sem reduzir
a sua importância é óbvio.
Aprendi a não
estranhar as ações humanas de caráter bestiais. Nem que as tragédias
decorrentes, incluindo suas causas e consequências, sejam registradas por
recursos diversos disponíveis para a memória de uma época. Nem, ainda, que os
relatos dos fatos se transformem em produtos de comercialização e consumo.
Trata-se de um complexo imbricamento de relações difícil de ser modificado. A
dor de corno de Menelau foi catalisadora da tragédia da guerra de Troia 1300
anos A.C. E as principais narrativas dos supostos fatos e seus mitos
vieram a ser elaboradas 500 anos depois das ocorrências e persistem até hoje,
mais de 3000 anos após a bela Helena ter decorado com chifres a cabeça do rei
espartano.
Desculpem-me pela
opinião sem o devido rigor histórico, mas sob alguns aspectos não haverá muita
diferença entre a venda como produto de consumo das narrativas da Ilíada e da
Odisseia e a venda da dor de corno registrada no tango de Gardel e reproduzido
com sucesso no Brasil pelo Chico Alves, há 80 anos. E acho que há chances
enormes do mesmo ocorrer, em algum futuro, com os fatos da chacina de Campinas.
Contudo ou apesar de
tudo, entendo que a obrigação da nossa geração é intervir para não deixar que
esses acontecimentos sejam registrados apenas como fatos banais e
folhetinescos, ainda que trágicos. É nossa obrigação deixar marca indelével que
eles também são fatos absurdos, inaceitáveis, extraordinários e repudiados,
ainda que ocorram como impulsos da nossa condição humana.
Recorrendo à poesia
do outro Chico, o Buarque, em sua mensagem aos “Futuros Amantes”, vamos deixar
para os escafandristas que, quem sabe, um dia explorarão nossas cidades
submersas, os vestígios que queremos que identifiquem a nossa estranha civilização.
Vamos deixar registrado em nossos quartos, em nossas coisas, em nossas almas e
até em nossos desvãos que essas ações estão em sentido completamente oposto ao
futuro que desejamos.
Tal postura passa por
uma militância política de condenação e rejeição sem qualquer condescendência,
e sem deixar qualquer espaço para argumentação ou justificativa de um
pensamento que se avoluma nos dias de hoje e que agrega em bandeiras políticas
o machismo, a homofobia, a intolerância religiosa e outros tantos fatores de
preconceitos e, consequentemente, de discriminações. E, bem mais do que isso,
não basta idealizar as nossas opções. É imperativo materializá-las, praticá-las
em nosso dia-a-dia. Usá-las como critérios prioritários em nossas escolhas e
condicionantes para quaisquer tipo de relações que pretendamos estabelecer,
sejam elas políticas, sociais ou afetivas. E de forma tão expressiva que não
sejam necessários sábios para decifrá-las no futuro.
No mais,
tentando aliviar o tom da conversa, resgatei três links que trazem,
respectivamente, as gravações de Chico Alves e de Carlos Gardel do tango "Noche
de Reyes", da autoria de Pedro M. Mafia e Jorge Curi, e também
a maravilha de "Futuros Amantes" de Chico Buarque.
(Chico Alves - Acesso em 04/01/2017)
(Carlos Gardel -
Acesso em 04/01/2017)
(Chico Buarque -
Acesso em 04/01/2017)
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