terça-feira, 22 de outubro de 2019

Ninguém socorreu a vítima


Leituras para distrair
Eram duas senhoras e uma delas estava muito agitada. Parecia estar chorando, mas também brigando. Reclamava descontrolada com palavras incompreensíveis que pareciam um dialeto. A cena foi na entrada do depósito de fubá, onde trabalhávamos. Na rua algumas pessoas já se agrupavam curiosas. Eram empregados e comerciantes das lojas laterais ao depósito. Por ali o ambiente nunca estava vazio, sempre havia alguém jogando conversa fora ou usando o telefone do depósito que era um recurso raríssimo, às vezes também algum freguês que comprava direto no balcão. Formou-se um barraco! A senhora agitada gesticulava referindo-se a um pacote que ela carregava. Era um embrulho em jornal com alguns destroços. Finalmente conseguimos entender: o caminhão de fubá tinha atropelado o seu liquidificador!

O embrulho continha os restos de um liquidificador que nem era tão novo, mas que estava destroçado, vítima do atropelamento. Esclarecida a reclamação, a risada da galera foi quase uníssona, sem ninguém mostrar qualquer empatia com a situação da senhora. Gozação geral. O único que se controlou, certamente por obrigação funcional, foi o gerente que queria saber detalhes do ocorrido. Nervosa, a reclamante explicou que estava em seu bairro conversando com uma vizinha no caminho de ida ou volta de um técnico de reparos de eletrodomésticos. Para não ficar cansada enquanto trocava palavras com a vizinha, apoiou o embrulho no chão. Ocorre que a região não tinha infraestrutura de ruas pavimentadas, calçadas ou coisa que o valha. Nem mesmo acostamento para pedestres. Os limites das ruas eram as valas a céu aberto que drenavam o esgoto das residências. Entretida com a conversa ela se afastou do embrulho e o caminhão de entregas do fubá passou em “alta velocidade” desconsiderando o fato e esmagando o liquidificador.

Não era necessário especular para perceber o significado da perda do eletrodoméstico para aquela senhora humilde . Também não era preciso muita investigação para comprovar que tinha sido o caminhão de entregas. O atropelamento foi no bairro Galo Branco, em São Gonçalo. Os caminhões tinham pinturas inconfundíveis com o nome da marca pintado em letras garrafais nas laterais da carroceria. Mesmo sem os recursos atuais de comunicação, pelos horários sabíamos com precisão em quais endereços da rota o caminhão deveria estar. Tudo dava credito à história que a senhora contou. Sem querer confusão o gerente se comprometeu a tratar o assunto logo que o caminhão chegasse da entrega do dia.

A moçada vizinha adorou a história e todos esperaram a chegada do caminhão. Foi o acontecimento do dia – sempre havia algum. Quando o caminhão chegou o motorista não fazia a menor ideia do atropelamento. Algum dos carregadores chegou a lembrar de umas senhoras acenando em alguma parte da rota, mas ninguém sabia exatamente o que ocorreu.

O motorista foi repreendido por dirigir em alta velocidade. A reclamação de alta velocidade não era inusitada, era recorrente. Houve caso anterior em que um supervisor da matriz foi até um local de reclamação e consultou testemunhas. Sobre a velocidade alguém comentou que quando o caminhão passava, olhando-se as laterais, só dava para ler o “Fu”. Bastou para convencê-lo. Em nosso caso o gerente negociou e pagou um liquidificador para a reclamante. A história ficou no anedotário da calçada.

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