terça-feira, 15 de outubro de 2019

Seu Nelso


Leituras para distrair

Era uma distância de cerca de 400 metros desde a porta do depósito de fubá e farinha onde trabalhávamos, em São Gonçalo, até um dos extremos da rua onde havia uma curva. Era de lá que “seu Nelso” apontava, de bicicleta, vindo de casa para o trabalho. O expediente começava às sete horas da manhã e invariavelmente outros empregados, também ajudantes de caminhão, já haviam chegado e assistiam seu Nelso apontar distante. O foco das atenções era verificar se ele vinha pedalando ou caminhando ao lado da bike. Chegar pedalando indicava um começo de dia normal, sem novidades. Caminhando ao lado da bicicleta sem montá-la era indício que o desjejum não se limitara ao café e tinha sido complementado com algumas doses de bebida mais forte, bem cedinho, cujo efeito já se fazia sentir.

Seu Nelso chegava calado, como se estivesse aporrinhado com a vida, sem dar muita conversa aos demais. Ele era um dos mais velhos do grupo onde todos fingiam não perceber o que estava acontecendo. Um falso respeito porque, sem constrangimentos, trocavam piadas sacanas sobre o estado etílico do companheiro  enquanto ele cumpria o ritual de vestir o macacão de trabalho. Havia um protocolo não explícito, mas aceito por todos, inclusive pelo gerente que tinha pleno conhecimento da situação: naqueles dias seu Nelso ocupava a posição de “batedor” no caminhão.

O batedor é o trabalhador com a função de colocar a mercadoria na cabeça dos carregadores de linha que a transportam. No caso, desde o depósito até o  caminhão durante a carga, e desde o caminhão até os locais indicados pelos clientes durante a entrega.

O batedor do depósito tinha função permanente porque era o responsável pela arrumação, organização das pilhas, costura das sacas, limpeza etc. Nos caminhões os batedores trabalhavam em rodízio por acordo entre os próprios carregadores. A tarefa exigia um esforço maior que os demais: coletar a mercadoria da cabeça dos carregadores e arrumar o carregamento do caminhão no início do dia, e realizar a operação inversa durante as entregas. Não era fácil! Afinal, cada caminhão saía diariamente com cerca de 8 a 10 toneladas de sacos e pacotes de farinha, fubá milho e derivados. Assim, nos dias que chegava meio chamuscado, seu Nelso fazia evaporar o álcool assumindo por sua conta a função de batedor. Eventualmente, ao longo do dia de trabalho, ele fazia as reposições necessárias para garantir o equilíbrio do seu metabolismo.

Apesar de maior esforço, a função dava certo poder a quem era especialmente forte, caso do seu Nelso. Um saco ou pilha  de 60 quilos de pacotes de farinha ou fubá depositados com força ou de forma maliciosamente desajeitada na cabeça do carregador poderia provocar o seu desequilíbrio derrubando a carga que estourava no chão na rua, no depósito ou nas dependências do cliente. Um transtorno cuja responsabilidade era sempre atribuída ao carregador que não tinha qualquer chance de apontar outro culpado. Tinha que se manter calado ouvindo as gozações dos demais que não faziam por menos. Bom cabrito não berra! Era a regra. Seu Nelso sabia disso, assim como todos, e as atividades transcorriam em clima quase cordial e sem incidentes maiores. Realizava sua tarefa e nunca vi nem soube que tivesse deixado algum furo.

Ao fim do dia seu Nelso voltava para casa, às vezes pedalando e outras vezes ao lado da bike. O amanhã seria outro dia. Boas lembranças.  ######


Nota: os fatos dessa crônica são reais, mas os nomes dos personagens foram adaptados, são fictícios.






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