Leituras para distrair
Era uma distância de cerca de 400 metros desde a porta do depósito
de fubá e farinha onde trabalhávamos, em São Gonçalo, até um dos extremos da
rua onde havia uma curva. Era de lá que “seu Nelso” apontava, de bicicleta,
vindo de casa para o trabalho. O expediente começava às sete horas da manhã e
invariavelmente outros empregados, também ajudantes de caminhão, já haviam
chegado e assistiam seu Nelso apontar distante. O foco das atenções era
verificar se ele vinha pedalando ou caminhando ao lado da bike. Chegar
pedalando indicava um começo de dia normal, sem novidades. Caminhando ao lado
da bicicleta sem montá-la era indício que o desjejum não se limitara ao café e
tinha sido complementado com algumas doses de bebida mais forte, bem cedinho,
cujo efeito já se fazia sentir.
Seu Nelso chegava calado, como se estivesse aporrinhado com a
vida, sem dar muita conversa aos demais. Ele era um dos mais velhos do grupo
onde todos fingiam não perceber o que estava acontecendo. Um falso respeito
porque, sem constrangimentos, trocavam piadas sacanas sobre o estado etílico do
companheiro enquanto ele cumpria o ritual de vestir o macacão de
trabalho. Havia um protocolo não explícito, mas aceito por todos, inclusive
pelo gerente que tinha pleno conhecimento da situação: naqueles dias seu Nelso
ocupava a posição de “batedor” no caminhão.
O batedor é o trabalhador com a função de colocar a mercadoria na
cabeça dos carregadores de linha que a transportam. No caso, desde o depósito
até o caminhão durante a carga, e desde o caminhão até os locais
indicados pelos clientes durante a entrega.
O batedor do depósito tinha função permanente porque era o
responsável pela arrumação, organização das pilhas, costura das sacas, limpeza
etc. Nos caminhões os batedores trabalhavam em rodízio por acordo entre os
próprios carregadores. A tarefa exigia um esforço maior que os demais: coletar
a mercadoria da cabeça dos carregadores e arrumar o carregamento do caminhão no
início do dia, e realizar a operação inversa durante as entregas. Não era
fácil! Afinal, cada caminhão saía diariamente com cerca de 8 a 10 toneladas de
sacos e pacotes de farinha, fubá milho e derivados. Assim, nos dias que chegava
meio chamuscado, seu Nelso fazia evaporar o álcool assumindo por sua conta a
função de batedor. Eventualmente, ao longo do dia de trabalho, ele fazia as
reposições necessárias para garantir o equilíbrio do seu metabolismo.
Apesar de maior esforço, a função dava certo poder a quem era
especialmente forte, caso do seu Nelso. Um saco ou pilha de 60
quilos de pacotes de farinha ou fubá depositados com força ou de forma
maliciosamente desajeitada na cabeça do carregador poderia provocar o seu
desequilíbrio derrubando a carga que estourava no chão na rua, no depósito ou
nas dependências do cliente. Um transtorno cuja responsabilidade era sempre
atribuída ao carregador que não tinha qualquer chance de apontar outro culpado.
Tinha que se manter calado ouvindo as gozações dos demais que não faziam por
menos. Bom cabrito não berra! Era a regra. Seu Nelso sabia disso, assim como
todos, e as atividades transcorriam em clima quase cordial e sem incidentes
maiores. Realizava sua tarefa e nunca vi nem soube que tivesse deixado algum
furo.
Ao fim do dia seu Nelso voltava para casa, às vezes pedalando e
outras vezes ao lado da bike. O amanhã seria outro dia. Boas lembranças. ######
Nota: os fatos dessa crônica são reais, mas os nomes dos
personagens foram adaptados, são fictícios.
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