terça-feira, 29 de outubro de 2019

O pequeno Zé


Leituras para distrair

O Zé era quase uma aberração, uma excentricidade. Não sei classificar. Ele devia resultar de uma adaptação darwiniana que preservara os processos cerebrais instintivos de sobrevivência e músculos. Porém, nada indicava que fosse dotado de uma característica humana básica: pensar o momento seguinte, de ter um propósito ou finalidade. Era uma “coisa” que vivia o momento presente e pronto. Sobrevivia por acaso e circunstâncias. Alguém sempre tomou conta dele, e entre os demais ajudantes de caminhão empregados no depósito de fubá o Zé era uma espécie de mascote. Pequenino, mas um dos mais fortes. Salvo as funções cerebrais, seu único indício de fragilidade de saúde era a falta da dentição frontal superior. Empregado antigo, os gerentes do depósito onde trabalhávamos sempre o protegeram. Enquanto trabalhamos juntos ele morava nas cabines dos caminhões de entregas que ficavam estacionados em um posto de gasolina durante as noites e os fins de semana. O gerente do depósito cuidava do seu salário e contingenciava uma parte para que ele tivesse o que comer. Uma marmita para o almoço e outra para o jantar. Semanalmente ele recebia vales para ter uns trocados. Seu mundo se limitava às andanças pelo bairro num raio de alguns quilômetros onde bebia suas cachaças. Era um sujeito  amigável, até porque era impossível esticar qualquer conversa com ele, logo não havia discordância.

Num dia de entrega no centro de Niterói, o Zé estava impaciente. Na Rua da Praia  nunca era possível cumprir os horários permitidos para entregas que precisavam ser feitas com caminhão em movimento, quase parando. As calçadas eram entupidas de gente, e para abrir caminho os carregadores batiam com as mãos nos sacos e pacotes de fubá e farinha provocando uma nuvem que afastava as pessoas.

Zé entrou no mercado cujo gerente era conhecido de todos por sua grosseria. Carregando 60 quilos de pacotinhos de farinha ou fubá na cabeça, Zé perguntou ao gerente onde deveria depositar a mercadoria. O sujeito cagou para ele que repetiu a pergunta. A moçada que presenciou disse que foram várias vezes até que o sujeito, sem mesmo olhar para o Zé, respondeu algo do tipo: joga aí, em qualquer lugar!  Zé não titubeou. Arremessou os pacotes no chão e a mercadoria explodiu espalhada por todos os cantos onde farinha ou fubá em pó conseguem atingir quando derrubados. Clientes, prateleiras, corredor tudo envolvido em pó e fumaça de fubá. Uma confusão dos diabos!

Interessante é que os detalhes dessas ocorrências só chegavam ao depósito na semana seguinte, através do vendedor que, puto da vida, reclamava com o gerente exigindo providências em nome dos seus clientes, punições etc.

Zé foi retirado daquela rota por uns tempos, o bastante para o assunto esfriar. A galera o sacaneava, chamando-o pelo apelido (Barrasco) e diziam: “Barrasco ... os homens querem pegar você!”. Referiam-se implicitamente a uma história que rolava, segundo a qual, antes de vir para São Gonçalo, o Zé teria acertado a foice em um capataz que implicou com ele quando ainda era cortador de cana no norte do Estado. Ele não esticava muito essa conversa. Respondia sempre, referindo-e ao tal capataz,  que “aquele” não perturbaria mais ninguém, e que ele (Zé) estava tranquilo porque os homens sabiam onde procurá-lo se quisessem pegá-lo. 

Não sei que fim levou o Zé. Sempre tive curiosidade. Certamente seguiu por aí, vendendo sua força de trabalho que alguém terá comprado e se apropriado do mais valor que produziu. Tomara que tenha encontrado outros protetores em seus caminhos.



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