Leituras para distrair
Enfermeirinha
linda! Minha princesa! Cuida de mim! As
moças fingiam ignorar e algumas desconsideravam. Outras respondiam com
xingamentos, mas a maioria recebia as exclamações como galanteio. Sorriam,
cochichavam entre si e o clima incentivava a repetição do assedio na semana
seguinte quando o caminhão de fubá passaria outra vez por ali, na rota Porto
Velho.
Porto
Velho é um bairro de São Gonçalo que, curiosamente, tem vários bairros
identificados como “porto”. Porto Velho, Porto Novo, Porto da Pedra, Porto da
Madama, Porto do Rosa, são denominações de um tempo em que a baia de Guanabara
era meio principal para o transporte de mercadorias. As embarcações utilizavam os
referidos portos que eram integrados ao transporte ferroviário. Essa dinâmica e
infraestrutura se perderam e o Estado do Rio paga um preço alto por isso.
No Porto
Velho havia uma importante indústria de sardinhas em lata, a Coqueiro, cujas instalações
iam desde uma rua de trânsito principal até os limites com a baía de Guanabara.
A Coqueiro era uma referência geográfica, tanto pelo seu porte
como pelo fato de exalar por suas chaminés uma catinga de peixe que impregnava
as redondezas. Tudo ficava perto, antes ou depois da “fábrica” de sardinhas.
Seus trabalhadores, talvez a maioria, eram mulheres que usavam uniformes
brancos e um avental claro, além de toucas similares às toucas hospitalares
utilizadas tradicionalmente pelas enfermeiras. Só para lembrar, na época ainda
não se dispunha da variedade de materiais e produtos que constituem os atuais
equipamentos de proteção, segurança e higiene. Com suas touquinhas e roupas
brancas, no descanso após o almoço, as trabalhadoras ocupavam a frente da
fábrica onde havia alguns bancos e árvores, além da rua por onde passava o
caminhão de entregas de fubá. Formava-se uma multidão de trabalhadoras e no horário do almoço parecia
uma festa.
Com
os seus macacões empoeirados após uma manhã de entregas, mas também porque eles
eram utilizados ao longo da semana, passar em frente à Coqueiro era um colírio
para os olhos dos carregadores. Do caminhão com a velocidade reduzida,
encarapitados nos sacos de farinha e fubá, eles mandavam para as trabalhadoras
os galanteios que conseguiam elaborar. Não tinham noção que praticavam uma
discriminação da qual eles também eram vítimas, e que reforçavam preconceitos e discriminações usuais e decorrentes da divisão social do trabalho em nosso sistema de produção. Para eles e elas, o
trabalho de enfermagem era mais importante que o de enlatar sardinhas, então,
chamar operárias de enfermeiras era um elogio. Certamente essa paquera
das “enfermeiras” da sardinha é intolerável quando vista sob a óptica de quem
busca despertar nos trabalhadores uma consciência de classe, mas ali essa regra
não valia. Se, por acaso, fosse mal recebida a brincadeira era vista apenas
como uma sacanagem, uma ironia sem agressão.
Certa
vez chegou ao escritório onde trabalhávamos a reclamação de alguém que se
identificou como representante da fábrica. O gerente considerou, mas logo se descobriu
que era um namorado, marido ou coisa que valha de uma das “enfermeiras”. Ocorreu
também que um dos carregadores passou a ter um relacionamento amoroso sério com
uma das meninas. Um fato ou outro, eu não saberia explicar, fez desaparecer a
paquera às moças da fábrica de sardinhas. Ainda hoje circulam trabalhadoras
uniformizadas na região. Não consigo evitar pensar que de algum caminhão de
entregas alguém gritará: Enfermeira linda, cuida de mim!
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