Opinião
Esse tal de isolamento social já durou tempo
bastante para deixar em nós as suas marcas. Não será apenas uma experiência
ocasional e sem importância, essa ficará gravada nas gerações que a estão vivenciando.
Nem estou falando da possibilidade de um fato trágico como a morte. Falo sobre
as práticas e comportamentos que estamos adotando ou transformando e que
assumiremos, conscientes ou não, ao deixar esse anacoretismo que o sacana do
coronavírus nos impôs.
Excluo as crianças. Essas guardarão
lembranças inconscientes. Pode ser que, mais tarde, alguns queiram saber o que
houve, aí consultarão os registros ou os mais velhos. Da minha infância, por
exemplo, lembro dos dias de
racionamento de energia elétrica. Na década de 60, durante um período de tempo
que não lembro, todas as noites, durante uma ou duas horas, a energia elétrica era
desligada e toda a cidade de São Gonçalo (RJ) onde eu morava ficava no escuro.
Não fazia a
menor ideia das dificuldades que meus pais e outras famílias passavam. Não sei
como era em outras cidades, mas para a molecada local foi um período especial e
divertido. Sentados nas calçadas, conversando e trocando brincadeiras e putarias,
como os moleques costumam fazer, passávamos o período de apagão quando até
mesmo a iluminação pública era cortada.
Só mais
tarde aprendi que foi a época
em que o Estado assumiu o controle público do setor elétrico e que os apagões
estavam no contexto de disputas contra corporações privadas internacionais que
a sociedade brasileira enfrenta até hoje. Enfim, não tinha a menor compreensão
do processo político que estávamos vivendo. Também nada sabia sobre a angústia
dos mais velhos, responsáveis por guiar suas famílias atravessando aqueles dias
complicados, meus pais entre eles. Apenas lembro dos encontros felizes nas
esquinas do nosso bairro.
Hoje a
óptica é outra. Não sei como as crianças lembrarão, mas penso nas marcas que
ficarão em nós, além das lembranças. A insegurança, o medo, a sensação de dias
“perdidos”. A inquietação de ser obrigado a conviver consigo mesmo e aturar
suas próprias idiossincrasias. A alimentação perturbada em conteúdos e
horários. A vontade de abraçar os amigos, beijar e cafungar os entes queridos.
O sono e a
rotina do dormir afetados. Dia desses saí da cama ao meio dia, sem saber sequer
que dia da semana era. Emburaquei pela madrugada fazendo coisas e fiz um esforço enorme para me colocar novamente nos
trilhos e recuperar a organização dos dias,
Tento
planejar as atividades e horários – quase sempre sem sucesso. A barba está sem
fazer, mas não sei ficar sem cortar o cabelo. Reflito sobre a vida e sobre as
possibilidades futuras. Organizo e arrumo coisas. Bato panelas contra o palhaço
filho da puta. Escrevo. Faço ginástica. Aplico-me com perseverança aos meus temas de estudo. Cochilo!
Bebo minhas
cachaças com uma moderação incomum. Essa moça branca é amiga e vive assim à
toa, sem querer se impor, como diz o samba enredo de Geraldo Babão (Salgueiro),
mas tenho enorme cagaço de uma relação sem limites. Tá bom do jeito que tá. Sairei do isolamento cachaceiro, tanto
quando entrei.
Ainda não fui tomado por qualquer
epifania que tenha me tornado um ser renovado, pós-coronavírus. Naturalmente
estarei remarcado por essa experiência, mas não serei “outro” no sentido de um
novo alguém. Pelo menos, até agora. Continuo mais comunista do que nunca,
consciente dos meus valores e disposto a lutar por eles. Aspirante a me tornar
uma figura melhor para o outro ou, no mínimo, que reconheça o outro – tarefa
que acho dificílima. Não é simples desviar o olhar desse espelho narcisista que
é o próprio umbigo.
Mas, a minha grande curiosidade é sobre
quais marcas permanecerão indeléveis e que estão sendo estampadas em mim, nesse
momento, sem que eu perceba. Quando eu sair, algumas outros perceberão, outras
apenas eu. Pensar sobre isso é um exercício interessante que recomendo.
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