quarta-feira, 15 de abril de 2020

A vida em tempos de coronavírus (27)


Opinião


Because, you come to me, with naught save love, ... – esses são os versos iniciais de uma canção que acho linda. Nem sei  a letra completa, mas sei a melodia guardada em minha memória desde a infância, infância mesmo.

A música original é francesa com o título “Parce que”, mas fez sucesso quando sua versão em inglês “Because” foi gravada por Bing Crosby. Bing Crosby morreu em 1977 com 73 anos e, para quem nunca ouviu falar do cara, segundo a Wikipédia ele chegou ao primeiro lugar das paradas americana mais vezes do que Frank Sinatra e Elvis Presley juntos. Não é pouca coisa.

Durante um grande período da minha infância,  sempre aos domingos, estávamos juntos com um tio e tia que moravam em Niterói. Em semanas alternadas, nós os visitávamos ou eles nos visitavam em São Gonçalo. Minha tia era, a rigor, uma prima mais velha que tratei como tia até o fim da sua vida, e o meu tio, falecido prematuramente, foi o melhor amigo do meu pai até onde eu lembro. Nossas famílias eram muito unidas, nunca tiveram desentendimentos, e crescemos praticamente juntos até o fim da adolescência: eu, meus irmãos e minhas primas – queridas até hoje.

Quando estávamos em Niterói, a casa do meu tio geralmente era visitada por um vizinho bem próximo que tinha uma voz de tenor – “seu Ribas”. Passado o dia, na hora das despedidas, fazia parte do ritual o meu tio por na vitrola um disco com a gravação de Bing Crosby interpretando "Because", e acompanhado em dupla por “seu Ribas” com sua voz potentíssima, possivelmente animado também por umas cervejas. Era sempre "Because",  esse era o ritual e a graça da brincadeira.

A canção, para quem tiver a curiosidade de ouvir, é muito bonita. A gravação terminava com o Bing Crosby estendendo a voz ao máximo e acompanhado em altura e volume por “seu Ribas”. O karaokê finalizava sob a admiração e aplauso dos presentes. Muitas vezes sob o apelo de “bis”.

Era o término de um dia feliz e, para mim,  tudo era belo. Era um assombro e admiração ver alguém tão próximo cantando em inglês, algo completamente distante do meu mundo de então.

Pouco tempo depois, mas já passada a infância e com a idade de 14 anos, eu trabalhava como office boy para um primo que também cantava e tinha uma voz muito bonita. Nosso escritório, na Praça do Barro Vermelho, um bairro de São Gonçalo (RJ),  era um enclave, montado com divisórias de eucatex, no canto de um enorme salão que funcionava como depósito de materiais de um armazém. Meu primo gostava de cantar e muitas vezes, a meu pedido, ele enchia os pulmões cantando “Because”. Era muito legal porque quando tinha carga ou descarga de materiais, os carregadores interrompiam a tarefa para ouvir o que era, sem dúvidas, uma bela audiência.

O biólogo Richard Dawkins (autor de “O Gene Egoísta”) cunhou o termo “meme” para identificar a unidade mínima de memória  e a propriedade de autopropagação e replicação de informação entre locais de seu armazenamento. O termo adquiriu significados específicos na internet e muitas das vezes se confunde com o termo “vírus” da informática, embora conceitualmente distintos.

Pensei nisso quando acordei hoje com os fragmentos da lembrança de “Because”. Alguns memes se auto replicaram assegurando essa memória prazerosa, porém foram atacados, na fração de segundo seguinte, como não poderia deixar de ser, pelos memes desse maldito e vírus que nos assombra.  Mas, cagarei para o coronavírus, confiarei na seleção da natureza. Entre os sonhos prazerosos dos memes distantes e esse pesadelo da experiência atual a natureza cuidará de me brindar com os primeiros.

NOTA
Bing Crosby - Because (1962) – Recuperado em 15/04/2020 de <https://www.youtube.com/watch?v=N25-G6Mndog>
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