segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Sobre o que se deve aprender na escola

Opinião

Recentemente tive a oportunidade de trabalhar durante dois anos como estagiário de professor em turmas de ensino médio do projeto Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Não tenho estatísticas, mas a maioria dos alunos pareceu ser do sexo feminino, de cor parda ou preta. Senhoras com família para cuidar, empregadas em atividades diversas, algumas com filhos ainda em fase infantil. Quase todos (homens e mulheres) trabalhavam em locais distantes, dependendo de um sistema de transporte precário, e muitos com atividades que afetavam a assiduidade.

A maioria deles nem tinha a visão que este tipo de projeto (EJA) que inclui escola, professores, material didático, alimentação e transporte é um projeto público e que resulta de uma disputa com outros projetos onde ele (aluno) não é o beneficiário. Uma disputa de recursos e de verbas públicas que poderiam ser alocadas em projetos para atender a interesses de outros grupos menores e específicos. Grupos que disputam a apropriação dessas verbas.

Muitos alunos, especialmente os mais jovens, não tinham a mínima noção de civilidade. Um comportamento comum era o entrar e sair de sala sem os usuais cumprimentos de cortesia, arrastar ruidosamente mesas e cadeiras, estabelecer conversas em tons altos e paralelas às aulas e ignorar a presença do professor.

Consultei um pouco sobre projeto EJA, sua história e outros aspectos, e encontrei diversos trabalhos de professores que se dedicam com empenho ao assunto. Também fiz minhas próprias observações e considerações que estão bem longe da qualidade das elaborações que tive a oportunidade ouvir, de ler e de estudar, mas não considero impróprias nem anacrônicas. Aprendi bastante, até porque essa era a finalidade do meu estágio, e aprendi que as tarefas dos professores, de maneira geral, eram e são bem mais complexas do que instruir os alunos sobre os aspectos específicos de suas disciplinas.

Por exemplo, aprendi que, entre outras, há a necessidade de  ensinar e cobrar do aluno, permanentemente, uma postura de civilidade e cortesia entre os seus no ambiente de sala de aula. Ensinar que a expectativa é que eles procedam assim não apenas em sala de aula, mas em todo o ambiente escolar e também nos demais ambientes da sua vida social. Entenda-se por civilidade: a prática de regras, maneiras e comportamentos formais que expressam respeito entre as pessoas.

Porém, aprendi que será um equívoco cobrar as práticas de civilidade como se os alunos estivessem cometendo uma subversão pré-elaborada. É verdade que eles sabem possivelmente a maioria das regras, mas não sabem utilizá-las simplesmente porque não praticam entre si em nenhum lugar nenhum, incluindo os seus lares. Convivem em ambientes onde as regras são outras e determinadas por outros valores, em alguns onde a civilidade , por incrível que possa parecer,  pode ser até uma prática constrangedora e que precisa ser escondida. Os seus comportamentos de “má educação” refletem apenas “falta de um tipo de educação” que é preciso ensiná-los.

Pedir licença ao entrar ou sair da sala de aula, falar com moderação, deslocar uma cadeira sem arrastá-la, tratarem-se respeitosamente e uns poucos outros protocolos devem ser ensinados como elementos fundamentais da disciplina escolar e cobrados pelo professor, inclusive com interrupção da aula para este tipo de orientação. Sempre que for possível, a orientação deve ser generalizada, sem exageros e sem firulas que apenas constrangem o aluno sem seduzi-lo para o uso da prática ensinada.

Os alunos precisam ser ensinados que as práticas disciplinares não são uma demonstração de obediência e reconhecimento de autoridades. São elementos que favorecem e constituem os suportes básicos do mecanismo do ensino-aprendizagem e da afirmação dos mesmos como indivíduos sociais credores e devedores de respeito, uns aos outros. Mas, ressalvo que o professor também precisa acreditar nisso.

Também aprendi que é muito importante insistir com os alunos sobre o papel deles em nosso contexto social. Mostrar que eles estão diante de uma oportunidade de utilização de recursos que são seus e que precisam ser conservados. Recursos que poderiam e que até deveriam ser aumentados, mas que para tal precisam ser valorizados e defendidos tanto com as suas posturas (dos alunos) na participação do projeto, como através dos seus desempenhos nas disciplinas curriculares e também com as suas mobilizações como sujeitos políticos, sob pena desses recursos serem desviados para outros fins que participam da disputa.

Frequentar aulas já é um passo significativo para aqueles alunos. Não fossem as dificuldades concretas que precisam superar, existem ainda aquelas de natureza subjetiva: constrangimentos, baixa-estima, não visão de perspectivas, acomodação com o status quo etc. Para eles, obstáculos que seriam apenas degraus na evolução do aprendizado podem representar paredões, barreiras quase intransponíveis e desestimulantes das suas tentativas de evolução. O passo seguinte neste cenário é a desistência.

E sobre as disciplinas específicas, estou convencido que o professor deve fazer um esforço especial para construir rampas de avanço no aprendizado, mesmo que sejam rampas suaves se consideradas à luz do ensino formal. O professor que insistir em estabelecer um filtro exemplar, uma barreira inflexível de controle da capacitação, um paredão intransponível de conhecimentos conseguirá, no máximo, elaborar um elogiável instrumento de avaliação, mas perderá os alunos por desistência dos mesmos quando um dos principais objetivos no cenário do nosso sistema educacional precisa ser também a atração e retenção dos alunos no sistema escolar.

Com outros professores aprendi - não tive a experiência -  que nas séries do ensino regular, dos níveis básico e médio, onde a presença  preponderante é de pré-adolescentes e de adolescentes os enfrentamentos são bem mais difíceis e complexos se comparados com os da educação de jovens e adultos.

Não são tarefas fáceis, tanto que eu mesmo não me habilito a realizá-las. E com essa visão, discordo completamente dessas mensagens reducionistas que circulam atualmente na web com uma lista fechada sobre o que se deve aprender “na escola” e o que se deve aprender “em casa” – e com adendos de censura ao ensino escolar conclamando para uma luta  “a favor da família e de um mundo melhor”.

Não discordo porque entender que a casa e a escola se confundem, mas porque a rigor essas listas apenas refletem a mediocridade dos seus elaboradores e apoiadores e, no fundo, não passam de um disfarce, um esconderijo de discriminações preconceituosas que estariam melhor acobertadas se fossem enfiadas no olho do cú dos seus autores.

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