terça-feira, 3 de novembro de 2020

Dia de visitas e muito trabalho

 Leituras para distrair


Durante parte da minha infância os dias de Finados tiveram um significado especial – nada religioso. Morávamos em rua vizinha ao cemitério e o terreno da casa era limitado lateralmente por vizinhos vivos e os fundos por outros que já não respondiam por si. O muro de fundos do nosso quintal era comum com o cemitério. 

O muro não passava de 2,30 metros, se muito. Uma pequena escada que construímos ficava permanentemente encostada no mesmo para acesso rápido ao topo. Rente ao muro, ainda do nosso lado, havia um mamoeiro, uma goiabeira de pequeno porte e uma groselheira, essa de porte razoável. A goiabeira era nosso acesso preferencial dispensando a escada. Do outro lado, colados ao muro, existiam túmulos acima do solo e a descida ou subida prescindia de escada. No máximo um apoio nas cruzes e capelinhas das sepulturas para impulsionar a subida. 

As casas vizinhas tinham características similares, mas não tinham crianças,  e a nossa era uma casa de molecada, embora casa e terreno fossem diminutos. Casa alugada para operários como o meu pai. Contudo, o cemitério funcionava como extensão do nosso quintal. Curiosamente, hoje o Aterro do Flamengo é o meu quintal, extensão frontal da minha moradia. Quando criança, o cemitério de São Gonçalo teve esse papel. 

Uma cafifa torada (uma  pipa solta porque foi  cortada por cruzamento de linhas) ou um balão caindo sempre tinham o enorme campo do cemitério como destino provável. Era cena comum um bando de moleques, minha tribo, adentrarem correndo pelo nosso quintal,  pulando o muro, sem pedir licença e sem encontrar  objeções, atrás de uma cafifa ou balão. Além dos sustos, a preocupação da minha mãe era ninguém se machucar na correria. Fazia parte das nossas vidas. 

Nas noites de meio de ano ficávamos empoleirados no muro, que era nosso e do cemitério, um posto estratégico, em vigília para identificar algum vulto de balão apagado que apontasse cair  entre as tumbas. Uma cumplicidade silenciosa porque sabíamos que outros grupos também espreitavam em outros locais. 

Pode parecer uma situação assustadora e mórbida, mas praticamente ninguém pensava em “assombração”, salvo para sacanear algum eventual moleque novato. Todos sabíamos que havia uma pedinte de esmolas que passava o dia na calçada principal do cemitério e que, à noite, abrigava-se entre as tumbas. Ela fazia parte da comunidade e seu apelido era Arraia Mijona. Embora todos soubéssemos que ela morava no cemitério, tínhamos um enorme cagaço de encontrá-la durante a noite, por mais que estivéssemos prevenidos. Esse era um medo comum. 

Os dias de Finados eram especiais porque era dia de ganhar dinheiro. Acordávamos cedo. Dia de trabalhar oferecendo serviços gerais aos visitantes. Limpeza de sepulturas. Algumas mais ricas, com acabamento em mármore ou azulejos,  precisavam de uma faxina geral – gorjeta boa. Outras, mais modestas, eram elevadas, mas precisavam de uma carpina das tiriricas que cresciam sobre a terra. Não eram comuns as atuais coberturas com placas de cimento.  Sem outros acabamentos além das capelinhas nas cabeceiras que pediam uma pintura de cal (caiação). 

As sepulturas  mais pobres e distantes e feitas diretamente no solo pediam a formação de um montículo de terra reconstruindo o suposto limite do enterramento. Em muitas o serviço era simplesmente fornecer água para encher as jarras de flores que eram renovadas ou uma limpeza na placa de identificação. Passávamos o dia caminhando equipados de vassourinha, pá de pedreiro, lata de água, regadores e outros apetrechos  oferecendo nossos serviços e recebendo as gratificações correspondentes. 

Hoje seríamos empreendedores. Alguns já contavam com networking de anos anteriores, outros iniciantes. Abordávamos os clientes com um elevator pitch e num sepulcro grande com target além das possibilidades individuais, então trabalhávamos em coworking. 

A nossa casa e quintal era um posto de suporte privilegiado para as nossas atividades. Um diferencial que  também  era aproveitado por colegas mais próximos. Meu irmão não tinha ainda idade para se lançar na busca de clientes e trabalhava no muro vendendo refrescos ou repondo baldes de água para a galera que trabalhava “na pista”. Porém, sorte dele,  havia uma sepultura bem próxima ao nosso muro – sepultura de luxo, construída em mármore - cujo responsável se tornou um cliente cativo do meu irmão e que garantia o faturamento dele, adicional à venda dos refrescos, inclusive em datas diferentes do dia de Finados.

O dia era intenso de atividades e nem mesmo queríamos parar para as refeições. As oportunidades precisavam ser aproveitadas. À noite era a hora de conferir o faturamento e de contar histórias, os casos, a concorrência, as chances aproveitadas e as perdidas. Isso e aquilo. Era um monte de sensações, recordações  que  me acompanharam pela vida. Volta e meia alguma me surpreende. Um susto, tipo uma aparição da Arraia Mijona – mas um susto amigo que sempre remete para uma lembrança boa e feliz. Sorte minha!   #####

2 comentários :

  1. Mais um texto maravilhoso, este relembrando a boa infância das brincadeiras de rua e sobre um "trabalho que deu prazer", que só a molecada feliz seria capaz de aproveitar. Parabéns Jorge!!

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  2. Jorge, muito bom o seu texto. Barulho de criança correndo, brincando para mim é uma sensação maravilhosa.

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