quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Múmias incômodas


Leituras para distrair

Há mais de 30 anos, viajando de Porto Velho para Vilhena, no estado de Rondônia, almoçávamos em um galpão que era o principal restaurante de uma das cidades do percurso. O som ambiente era o serviço de alto falantes da cidade que noticiava uma polêmica local. A prefeitura insistia em remover um antigo cemitério para construir uma estrada necessária para a cidade, mas encontrava objeções de parte da polução que considerava importante preservar o local de sepultamento dos primeiros colonizadores da região.

Não sei qual foi o resultado da polêmica, mas ela marcou minha memória. Logo que ouvi a notícia fiquei a pensar se naquele mundão de selva amazônica não haveria uma alternativa de percurso para a tal estrada que preservasse o cemitério. Também fiquei imaginando que a população, migrantes de todas as regiões do país, já enfrentava batalhas duríssimas tentando ganhar suas vidas desbravando aquele ambiente inóspito de selva e de malária. Por que deveriam se preocupar se algumas caveiras estariam enterradas aqui ou acolá?

Repetidas vezes conversei sobre essa história entre amigos, como exemplo, em pequena escala, de escolhas que determinam o caráter de uma sociedade em formação. Conversamos sobre a importância da objeção às intenções do prefeito, que até poderia ser uma boa solução de engenharia. Afinal, uma sociedade que não valorizasse a sua história e nem preservasse os símbolos que a representavam, dificilmente teria algum compromisso com o seu próprio futuro. Como poderiam pensar em algo como preservação ambiental e cuidados no trato com a  floresta sem algum valor cultural que sustentasse esses compromissos?

Lembrei essa história em meio à profusão de pensamentos e emoções que modularam o sentimento de enorme raiva que brotou em muitos de nós com a tragédia do museu da Quinta da Boa Vista. Indignação, tristeza, impotência, vergonha, dor, constrangimento, revolta, uma lista longa que me faz pensar novamente sobre o compromisso de uma sociedade com o seu próprio futuro, na medida em que ela sequer valoriza a sua história.

Uma morte anunciada – como estão anunciadas outras! Exclamamos, quase resignados. Nem deveria surpreender, afinal, o Hospital do Fundão, assim como o Museu da Quinta, também vinculado à UFRJ, guardadas as peculiaridades dos vínculos administrativos, também têm sido abandonado à sua sorte, tal e qual a própria universidade. Não cuidaram do hospital que guarda seres vivos, por que cargas cuidariam de um depósito de múmias e fósseis?

O fato é que a nossa sociedade ainda vive a tentativa de se formar em uma massa cultural com liga consistente e suficiente para enfrentarmos esse tipo de situação. A história não nos fez coalhar, como leite, formando blocos culturais distintos. Talvez isso até acelerasse processos de consolidação, mas também seria uma divisão em sociedades distintas, o que não parece ser a nossa vocação. Queiramos, ou não, ainda somos uma farofa de hábitos, práticas e costumes, mas, ainda , sem liga cultural, por mais que em nosso imaginário exista a figura de um ser “brasileiro”. Imaginar isso é bom, mas ainda é um desejo, e precisaremos de mais gerações para vê-lo concretizado. Nessas circunstâncias, a questão que sobressai é se teremos tempo de chegar até lá ou se nos destruiremos antes disso, fazendo nossas cagadas.

Vilhena, a principal cidade ao sul de Rondônia, é uma espécie de portal da Amazônia para quem chega do sul do país, através do Mato Grosso. Identificar isso num mapa é interessante. Eu e outros colegas aprendemos em conversas com caminhoneiros que eles sabiam que estavam entrando na Amazônia quando avistavam as antenas da Embratel de Vilhena. As antenas em questão, eram antenas especiais para a cobertura de distâncias enormes, centenas de quilômetros, usando uma técnica chamada de tropodifusão. Poucas pessoas tiveram a oportunidade de ver de perto antenas daquele tipo, porque elas foram utilizadas especialmente para as transmissões na região, então impenetrável, da floresta amazônica. Elas eram lindas e gigantescas. E, conforme os caminhoneiros, funcionavam como faróis cuja visão anunciava a chegada à região da floresta. O advento das comunicações por satélite permitiu a substituição da tropodifusão, que tinha restrições na qualidade das transmissões e, consequentemente, a desativação das antenas.

Alguns de nós achávamos que as antenas poderiam ter sido preservadas nos locais, mesmo sem uso. Haveria um gasto adicional para a sua manutenção mecânica, mas que se justificava pelo valor simbólico que tinham, afinal, elas e a própria Embratel, ainda estatal, também eram pioneiras na Amazônia. 

As nossas tentativas foram em vão e nossas propostas classificadas como românticas e infantis. Até onde eu soube, elas foram desmontadas e vendidas como ferro-velho. As estações e terrenos, que sempre foram bem cuidados, foram abandonadas e favelizadas. Poderiam ter sido resguardadas como um museu. Mas, quem sabe, talvez também fossem perdidas em algum incêndio.
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Um comentário :

  1. Como sempre, excelente texto. Parabéns por guardar e preservar na memória fatos reais do passado que o tempo faz muitos irresponsáveis esquecerem. Abraços.

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