Leituras para distrair
Há mais de 30 anos, viajando de Porto Velho para
Vilhena, no estado de Rondônia, almoçávamos em um galpão que era o principal
restaurante de uma das cidades do percurso. O som ambiente era o serviço de
alto falantes da cidade que noticiava uma polêmica local. A prefeitura insistia
em remover um antigo cemitério para construir uma estrada necessária para a
cidade, mas encontrava objeções de parte da polução que considerava importante
preservar o local de sepultamento dos primeiros colonizadores da região.
Não sei qual foi o resultado da polêmica, mas
ela marcou minha memória. Logo que ouvi a notícia fiquei a pensar se naquele mundão
de selva amazônica não haveria uma alternativa de percurso para a tal estrada
que preservasse o cemitério. Também fiquei imaginando que a população, migrantes
de todas as regiões do país, já enfrentava batalhas duríssimas tentando ganhar suas
vidas desbravando aquele ambiente inóspito de selva e de malária. Por que deveriam
se preocupar se algumas caveiras estariam enterradas aqui ou acolá?
Repetidas vezes conversei sobre essa história
entre amigos, como exemplo, em pequena escala, de escolhas que determinam o
caráter de uma sociedade em formação. Conversamos sobre a importância da
objeção às intenções do prefeito, que até poderia ser uma boa solução de
engenharia. Afinal, uma sociedade que não valorizasse a sua história e nem
preservasse os símbolos que a representavam, dificilmente teria algum
compromisso com o seu próprio futuro. Como poderiam pensar em algo como
preservação ambiental e cuidados no trato com a
floresta sem algum valor cultural que sustentasse esses compromissos?
Lembrei essa história em meio à profusão de
pensamentos e emoções que modularam o sentimento de enorme raiva que brotou em
muitos de nós com a tragédia do museu da Quinta da Boa Vista. Indignação,
tristeza, impotência, vergonha, dor, constrangimento, revolta, uma lista longa
que me faz pensar novamente sobre o compromisso de uma sociedade com o seu
próprio futuro, na medida em que ela sequer valoriza a sua história.
Uma morte anunciada – como estão anunciadas
outras! Exclamamos, quase resignados. Nem deveria surpreender, afinal, o
Hospital do Fundão, assim como o Museu da Quinta, também vinculado à UFRJ,
guardadas as peculiaridades dos vínculos administrativos, também têm sido
abandonado à sua sorte, tal e qual a própria universidade. Não cuidaram do
hospital que guarda seres vivos, por que cargas cuidariam de um depósito de
múmias e fósseis?
O fato é que a nossa sociedade ainda vive a
tentativa de se formar em uma massa cultural com liga consistente e suficiente
para enfrentarmos esse tipo de situação. A história não nos fez coalhar, como
leite, formando blocos culturais distintos. Talvez isso até acelerasse processos
de consolidação, mas também seria uma divisão em sociedades distintas, o que
não parece ser a nossa vocação. Queiramos, ou não, ainda somos uma farofa de
hábitos, práticas e costumes, mas, ainda , sem liga cultural, por mais que em nosso
imaginário exista a figura de um ser “brasileiro”. Imaginar isso é bom, mas
ainda é um desejo, e precisaremos de mais gerações para vê-lo concretizado. Nessas circunstâncias, a questão que sobressai é se teremos tempo de chegar até
lá ou se nos destruiremos antes disso, fazendo nossas cagadas.
Vilhena, a principal cidade ao sul de Rondônia,
é uma espécie de portal da Amazônia para quem chega do sul do país, através do
Mato Grosso. Identificar isso num mapa é interessante. Eu e outros colegas
aprendemos em conversas com caminhoneiros que eles sabiam que estavam entrando
na Amazônia quando avistavam as antenas da Embratel de Vilhena. As antenas em
questão, eram antenas especiais para a cobertura de distâncias enormes,
centenas de quilômetros, usando uma técnica chamada de tropodifusão. Poucas
pessoas tiveram a oportunidade de ver de perto antenas daquele tipo, porque
elas foram utilizadas especialmente para as transmissões na região, então impenetrável,
da floresta amazônica. Elas eram lindas e gigantescas. E, conforme os
caminhoneiros, funcionavam como faróis cuja visão anunciava a chegada à região
da floresta. O advento das comunicações por satélite permitiu a substituição da
tropodifusão, que tinha restrições na qualidade das transmissões e,
consequentemente, a desativação das antenas.
Alguns de nós achávamos que as antenas
poderiam ter sido preservadas nos locais, mesmo sem uso. Haveria um gasto adicional
para a sua manutenção mecânica, mas que se justificava pelo valor simbólico que
tinham, afinal, elas e a própria Embratel, ainda estatal, também eram pioneiras
na Amazônia.
As nossas tentativas foram em vão e nossas propostas classificadas
como românticas e infantis. Até onde eu soube, elas foram desmontadas e
vendidas como ferro-velho. As estações e terrenos, que sempre foram bem
cuidados, foram abandonadas e favelizadas. Poderiam ter sido resguardadas como
um museu. Mas, quem sabe, talvez também fossem perdidas em algum incêndio.
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Como sempre, excelente texto. Parabéns por guardar e preservar na memória fatos reais do passado que o tempo faz muitos irresponsáveis esquecerem. Abraços.
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