domingo, 19 de outubro de 2025

A boiada da IA (Inteligência Artificial)

 Opinião

 

O Intercept Brasil fez uma serie especial de reportagens intitulada “A boiada da IA” tratando sobre como o aumento da demanda por inteligência artificial tornou o Brasil especialmente interessante para fornecer infraestrutura para big techs e sobre o impacto da indústria de data centers no Brasil. A última matéria da serie trata da construção, pela TikTok, de um mega data center em uma cidade com histórico de seca no Ceará.

Vale ressaltar que os interesses são de origens diversas e não existe um grupo “bonzinho”. Americanos, russos, chineses ou de outra identificação nacional competem entre si. O nome disso é capitalismo. E toda leitura precisa ser bem crítica, inclusive essa publicada aqui.

A reportagem especial do Intercept pode ser acessada pelo link a seguir. ###

 

A boiada da IA (Serie especial do Intercept Brasil – Acesso em 15/10/2025)

<https://www.intercept.com.br/especiais/a-boiada-da-ia/>

Colonialismo digital

 Opinião

 

O jornal O Globo de 15/10/2025 publicou uma longa matéria sobre tecnologia no Rio de Janeiro e menciona um projeto de data center na Barra da Tijuca. Segundo o texto, o consumo projetado seria de 1,5 GW, podendo chegar a 3,2 GW. O site da prefeitura confirma essa publicação – a criação do “Rio AI City” e anuncia consumos projetados de 1,8 a 3,0 GW.

A maioria dos leitores — eu incluso — não tem noção do que isso significa. Recorrendo ao ChatGPT, o oráculo digital do momento, para perguntar qual seria a demanda elétrica de uma cidade com 100 mil habitantes, a  resposta foi: entre 0,02 e 0,06 GW, dependendo do padrão de consumo. Por regra de três, e sem o rigor de um cálculo oficial, a demanda inicial desse data center equivaleria à de cinco cidades de porte médio, como Niterói (RJ).

Para comparar: Itaipu, uma das maiores hidrelétricas do mundo, tem uma capacidade energética instalada de 14 GW. Ou seja, esse único empreendimento consumiria cerca de 10% da capacidade instalada de Itaipu. A matéria, no entanto, não questiona os impactos desses números — e sequer menciona o enorme consumo de água necessário para resfriar as máquinas.

 Será que isso é bom para o país? 

O tema evoca os anos 1980, quando poucos entendiam o significado  de  “comunicação de dados” e a sua importância para os projetos estratégicos nacionais. Hoje, os data centers povoam esse universo tecnológico misterioso e acessível apenas ao iniciados — símbolos de modernidade, mas também de consumo absurdo de energia e recursos naturais. O Brasil parece ser um paraíso para as gigantes corporações digitais que vêm a exploração do nosso potencial hídrico como a possibilidade de uma versão atualizada da velha lógica de exploração colonial. Um amigo cunhou a expressão: um e-colonialismo.

É urgente discutir os impactos reais dessa corrida tecnológica. Como foi na década de 80 com as telecom, não faltarão os iludidos, fascinados ou emburrecidos pelas seduções tecnológicas, e que servirão como buchas de canhão na defesa da irreversibilidade desses processos e da inutilidade de questioná-los. Ainda assim, com alguns amigos, buscamos romper essas barreiras de silêncio e acomodação insistindo em provocar o debate do assunto. Um esforço necessário e justificado.

Seguem sugestões de leituras sobre o tema: um vídeo da BBC, um matéria da Revista Fapesp e um link para publicação da prefeitura do Rio de Janeiro. Os números impressionam e inquietam. ###

 

A água potável 'perdida' em data centers de Inteligência Artificial  (BBC News Brasil) – Acesso em 16/10/2025:

https://www.youtube.com/watch?v=JS-PRom-dpA

 

As estratégias para tornar os data centers mais sustentáveis (Revista FAPESP – Março de 2025)

https://revistapesquisa.fapesp.br/as-estrategias-para-tornar-os-data-centers-mais-sustentaveis/

 

Rio anuncia o projeto “Rio AI City”: o maior hub de data centers da América Latina e um dos dez maiores do mundo – Site da prefeitura do Rio de Janeiro

https://prefeitura.rio/noticias/rio-anuncia-o-projeto-rio-ai-city-o-maior-hub-de-data-centers-da-america-latina-e-um-dos-dez-maiores-do-mundo/

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Carta da Paz do Esquivel 2025

 Opinião

 

O mundo está estranho. No aniversário de 533 anos da chegada de Colombo às Américas, o governo argentino de Javier Milei divulgou vídeo afirmando que a colonização marcou “a prevalência da civilização sobre a selvageria” e que os povos originários viviam “ mergulhados na barbárie.”

É difícil conter a bronca contra os hermanos portenhos, mas no mesmo 12/10/2025, felizmente, o também argentino Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz de 1980, reagiu com em carta aberta à venezuelana Corina Machado, Nobel de 2025, que dedicou o seu prêmio a Donald Trump. Carajo!!

O vídeo do governo argentino está disponível na web. Nada fake. Ver link no final dessa publicação. A carta do Esquivel estou replicando a seguir.

 

Carta de Adolfo Pérez Esquivel (Nobel da Paz 1980) a Maria Corina Machado (Nobel da Paz 2025)

 

De Nobel para Nobel

 

Envio-lhe as saudações de Paz e Bem que a humanidade e os povos que vivem na pobreza, no conflito, na guerra e na fome tão desesperadamente necessitam. Esta carta aberta é para expressar sua gratidão e compartilhar algumas reflexões.

Fiquei surpreso com sua designação como Prêmio Nobel da Paz pelo Comitê Nobel. Isso me fez lembrar das lutas contra as ditaduras no continente e em meu país sob ditaduras militares que suportamos de 1976 a 1983 e resistimos às prisões, à tortura e ao exílio com milhares de pessoas desaparecidas, crianças sequestradas e desaparecidas e os voos da morte dos quais sou um sobrevivente.

Em 1980, o Comitê Nobel me concedeu o Prêmio Nobel da Paz. 45 anos se passaram e continuamos trabalhando a serviço dos mais pobres e ao lado dos povos latinoamericanos. Em nome de todos eles, assumi esta alta distinção, não pelo Prêmio em si, mas pelo compromisso ao lado dos povos compartilhando as lutas e esperanças para construir um novo amanhecer. A paz se constrói dia a dia, e devemos ser coerentes entre palavras e ações.

Aos 94 anos, continuo aprendendo com a vida e me preocupo com sua postura e suas decisões sociais e políticas. Por isso, envio estas reflexões.

O governo venezuelano é uma democracia com seus altos e baixos. Hugo Chávez abriu caminho para a liberdade e a soberania do povo e lutou pela unidade continental; foi um despertar da Pátria Grande.

Os Estados Unidos a atacaram constantemente; não podem permitir que nenhum país do continente escape de sua órbita e dependência colonial; continuam a sustentar que a América Latina é seu “quintal”. O bloqueio americano a Cuba há mais de 60 anos é um atentado à liberdade e aos direitos do povo. A resistência do povo cubano é um exemplo de dignidade e força.

Estou surpreso com o quanto você se apega aos Estados Unidos, e você deve saber que eles não têm aliados nem amigos, apenas interesses. As ditaduras impostas na América Latina foram instrumentalizadas por seus interesses de dominação, destruindo a vida e a organização social, cultural e política dos povos que lutam por sua liberdade e autodeterminação. Nós, o povo, resistimos e lutamos pelo direito de sermos livres e soberanos, não uma colônia dos Estados Unidos.

O governo de Nicolás Maduro vive sob a ameaça dos Estados Unidos e do bloqueio. Basta considerar as forças navais no Caribe e o perigo de invasão do seu país. Vocês não disseram uma palavra, ou apoiam a interferência desta grande potência contra a Venezuela. O povo venezuelano está pronto para enfrentar essa ameaça.

Corina, pergunto-lhe. Por que você pediu aos EUA que invadissem a Venezuela? – Quando recebeu o anúncio de que receberia o Prêmio Nobel da Paz, você o dedicou a Trump. O agressor do seu país, mentindo e acusando a Venezuela de narcotráfico, uma mentira semelhante à de George Bush, que acusou Saddam Hussein de possuir “armas de destruição em massa”. Um pretexto para invadir o Iraque e saqueá-lo, causando milhares de vítimas, mulheres e crianças. Eu estava em Bagdá no final da guerra, no hospital pediátrico, e vi a destruição e as mortes causadas por aqueles que se proclamam defensores da liberdade. A pior forma de violência é a mentira.

Não se esqueça, Corina, que o Panamá foi invadido pelos EUA, causando morte e destruição para capturar um antigo aliado, o General Noriega. A invasão deixou 1.200 mortos em Los Chorrillos. Hoje, os EUA tentam tomar novamente o Canal do Panamá. É uma longa lista de intervenções e sofrimento na América Latina e no mundo por parte dos EUA. As veias da América Latina continuam abertas, como diz Eduardo Galeano.

Preocupa-me que você não tenha dedicado o Prêmio Nobel ao seu povo, mas sim ao agressor da Venezuela. Acredito, Corina, que você precisa analisar e saber onde se posiciona, se você é apenas mais uma peça do sistema colonial estadunidense, sujeita aos seus interesses de dominação, que nunca poderão ser para o bem do seu povo. Como opositora do governo Maduro, suas posições e opções geram muita incerteza. Você recorre ao pior quando pede que os EUA invadam a Venezuela.

O importante a ter em mente é que construir a paz exige muita força e coragem para o bem do seu povo, que eu conheço e amo profundamente.

Onde antes havia barracos nas montanhas sobrevivendo na pobreza e na miséria, hoje há moradia digna, saúde, educação e cultura. A dignidade do povo não se compra nem se vende.

Corina, como diz o poeta: “Caminhante, não há caminho, o caminho se faz caminhando”. Agora você tem a oportunidade de trabalhar pelo seu povo e construir a paz, não de provocar mais violência. Um mal não se resolve com outro mal maior. Teremos apenas dois males e nunca uma solução para o conflito.

Abra sua mente e seu coração ao diálogo, ao encontro com seu povo, esvazie o jarro da violência e construa a paz e a unidade entre seus povos para que a luz da liberdade e da igualdade possa entrar.

Adolfo Pérez Esquivel 12-10-25


Link para o vídeo do governo argentino - Acesso em 15/10/2025

Casa Rosada 12 de outubro de 2025