terça-feira, 14 de abril de 2020

A vida em tempos de coronavírus (26)


Opinião


O impacto negativo da crise do coronavírus na estrutura social do país já está ocorrendo. Projeta-se a sua versão para o período pós-isolamento, mas seus efeitos já estão sendo experimentados. Não será necessário esperar para percebê-los ou senti-los.

Assim, não temos que esperar o agravamento, nem o clímax, nem o refluxo pandêmico para encaminhar, propor, apregoar e lutar por providências que assegurem melhores condições de vida para a população, especificamente na área socioeconômica.  E o  que desejamos é, na mais modesta das hipóteses, maior distribuição da riqueza que, nunca é demais repetir, é construída exclusivamente pelos trabalhadores e apropriada por parasitas no sistema de produção.

Infelizmente, para um enorme número de pessoas esse discurso soa como um “blá, blá, blá político”, no sentido pejorativo do termo. Parece uma conversa já vista e vazia, e o próprio termo “discurso” é assimilado como algo sem valor e inconsequente. Essa maioria não é engajada e, pior do que isso, é  alienada das disputas por modelos sociais, embora sofra todas as consequências  desses embates.

Por outro lado, há um grupo de sujeitos e de organizações que não pensa assim. Não são alienados e conhecem perfeitamente a estrutura e os seus papeis na organização social. Sabem que o não engajamento da maioria lhes é favorável, e tratam com abnegação os seus interesses que conflitam com os da maioria que “detesta a política”.

Esse grupo reduzidíssimo está organizado em grandes corporações privadas e está correndo atrás das eventuais reduções de seus ganhos. Alguns, na verdade, até estão tratando de como ganhar mais, e todos estão buscando garantir as melhores posições para os embates que ocorrerão nos períodos pós-coronavírus.

Hoje há manchetes nos jornais anunciando que “doações de empresas chegam a 2,2 bilhões”. Fazem parecer que a ordem capitalista mudou. Como se alguns empresários e corporações estivessem colocando a mão no bolso e repartindo suas riquezas, revertendo o fluxo natural do sistema. Assim, são anunciadas como “doações” operações financeiras que, antes de tudo, visam o posicionamento estratégico de capitais buscando o melhor aproveitamento dos mesmos, com garantias de seu controle, redução de riscos, reduções de impostos e o escambau.

Nós também precisamos cuidar dos nossos interesses, e a hora de começar já passou, já estamos correndo atrás do prejuízo. E um dos nossos interesses principais deve ser fazer com que essa repartição  ocorra efetivamente, e há formas de fazer isso.

Na cidade de São Gonçalo (RJ) está em montagem um hospital de campanha com aporte de grana do próprio município, do Estado e dos municípios de Niterói e Maricá. O hospital está sendo montado num campo de futebol de um clube da cidade, um espaço privado,  e o uso desse espaço é uma intervenção da prefeitura que tem o título “requisição administrativa”. Esse uso está apoiado em uma sequência instrumentos oficiais, mas decorre originalmente de um poder instituído pelo inciso XXV do artigo 5° da Constituição, que estabelece: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”.

Para fins diversos, assim como em São Gonçalo, existem casos de requisições administrativas em outras cidades do país e, consequentemente, articulam-se defesas da propriedade privada contra esse poder público, mas aqui o foco não é debater a legislação. Trata-se, principalmente, de colocar em pauta a possibilidade de usos de tais instrumentos para o interesse público.

Pequenos produtores de cachaças de alambiques, contribuindo para o combate ao coronavírus,  têm tomado a iniciativa de doarem – efetivamente – para a produção de álcool 70 graus, as parcelas das destilações que não são utilizadas na elaboração da bebida (cabeça) e que são ricas em concentração de etanol. Mas, são iniciativas tímidas. É preciso que as autoridades, em nome do iminente perigo público, atuem diretamente sobre meia dúzia de grandes produtores de cachaças, que produzem mais de 800 milhões de litros anuais, para que se organizem para suprir essa necessidade pública.

Da mesma forma, a FIESP, FIERJ, FIEMG e as FIE** que existirem devem se movimentar, elas próprias, junto aos seus filiados, para produzirem máscaras e aparelhos de ventilação mecânica para as necessidades da crise e sem ônus para a sociedade – em nome do iminente perigo público.

Não há que viabilizar financiamentos para esses enormes conglomerados realizarem essas ações. Seus lucros já são absurdos  e continuarão a ser após a crise. Há muita riqueza acumulada e que pode ser distribuída – efetivamente e agora - no atendimento das necessidades públicas.

Esses grupos têm recursos, conhecimento e capacitação para atender   a essas necessidades públicas emergenciais. Sem cobranças disfarçadas de doações, subsídios etc. Não estarão fazendo favor nenhum, e esse imperativo da sociedade ainda assim, estará longe, muito longe, a anos luz de qualquer coisa que possa ser chamada de socialismo ou comunismo.

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NOTAS
[1]
São Gonçalo começa construção de hospital de campanha – Recuperado em 14/04/2020 de <https://alcantaratemdetudo.com.br/sao-goncalo-comeca-construcao-de-hospital-de-campanha/>

 [2]
A requisição administrativa em tempos de Covid-19 – Recuperado em 14/04/2020 de <https://www.migalhas.com.br/depeso/323162/a-requisicao-administrativa-em-tempos-de-covid-19>

[3]
Produtores de cachaça na Paraíba doam 'álcool 70' para hospitais em combate ao coronavírus - Recuperado em 14/04/2020 de <https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2020/03/19/produtores-de-cachaca-na-paraiba-doam-alcool-70-para-hospitais-em-combate-ao-coronavirus.ghtml>

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