segunda-feira, 6 de abril de 2020

A vida em tempos de coronavírus (18)


Opinião


Esse tal de isolamento social já durou tempo bastante para deixar em nós as suas marcas. Não será apenas uma experiência ocasional e sem importância, essa ficará gravada nas gerações que a estão vivenciando. Nem estou falando da possibilidade de um fato trágico como a morte. Falo sobre as práticas e comportamentos que estamos adotando ou transformando e que assumiremos, conscientes ou não, ao deixar esse anacoretismo que o sacana do coronavírus nos impôs.

Excluo as crianças. Essas guardarão lembranças inconscientes. Pode ser que, mais tarde, alguns queiram saber o que houve, aí consultarão os registros ou os mais velhos. Da minha infância, por exemplo,  lembro dos dias de racionamento de energia elétrica. Na década de 60, durante um período de tempo que não lembro, todas as noites, durante uma ou duas horas, a energia elétrica era desligada e toda a cidade de São Gonçalo (RJ) onde eu morava ficava no escuro.

Não fazia a menor ideia das dificuldades que meus pais e outras famílias passavam. Não sei como era em outras cidades, mas para a molecada local foi um período especial e divertido. Sentados nas calçadas, conversando e trocando brincadeiras e putarias, como os moleques costumam fazer, passávamos o período de apagão quando até mesmo a iluminação pública era cortada.

Só mais tarde aprendi que foi a época em que o Estado assumiu o controle público do setor elétrico e que os apagões estavam no contexto de disputas contra corporações privadas internacionais que a sociedade brasileira enfrenta até hoje. Enfim, não tinha a menor compreensão do processo político que estávamos vivendo. Também nada sabia sobre a angústia dos mais velhos, responsáveis por guiar suas famílias atravessando aqueles dias complicados, meus pais entre eles. Apenas lembro dos encontros felizes nas esquinas do nosso bairro.

Hoje a óptica é outra. Não sei como as crianças lembrarão, mas penso nas marcas que ficarão em nós, além das lembranças. A insegurança, o medo, a sensação de dias “perdidos”. A inquietação de ser obrigado a conviver consigo mesmo e aturar suas próprias idiossincrasias. A alimentação perturbada em conteúdos e horários. A vontade de abraçar os amigos, beijar e cafungar os entes queridos.

O sono e a rotina do dormir afetados. Dia desses saí da cama ao meio dia, sem saber sequer que dia da semana era. Emburaquei pela madrugada fazendo coisas e fiz  um esforço enorme para me colocar novamente nos trilhos e recuperar a organização dos dias,

Tento planejar as atividades e horários – quase sempre sem sucesso. A barba está sem fazer, mas não sei ficar sem cortar o cabelo. Reflito sobre a vida e sobre as possibilidades futuras. Organizo e arrumo coisas. Bato panelas contra o palhaço filho da puta. Escrevo. Faço ginástica. Aplico-me com perseverança aos meus temas de estudo. Cochilo!

Bebo minhas cachaças com uma moderação incomum. Essa moça branca é amiga e vive assim à toa, sem querer se impor, como diz o samba enredo de Geraldo Babão (Salgueiro), mas tenho enorme cagaço de uma relação sem limites. Tá bom do jeito que tá. Sairei do isolamento cachaceiro, tanto quando entrei.

Ainda não fui tomado por qualquer epifania que tenha me tornado um ser renovado, pós-coronavírus. Naturalmente estarei remarcado por essa experiência, mas não serei “outro” no sentido de um novo alguém. Pelo menos, até agora. Continuo mais comunista do que nunca, consciente dos meus valores e disposto a lutar por eles. Aspirante a me tornar uma figura melhor para o outro ou, no mínimo, que reconheça o outro – tarefa que acho dificílima. Não é simples desviar o olhar desse espelho narcisista que é o próprio umbigo.

Mas, a minha grande curiosidade é sobre quais marcas permanecerão indeléveis e que estão sendo estampadas em mim, nesse momento, sem que eu perceba. Quando eu sair, algumas outros perceberão, outras apenas eu. Pensar sobre isso é um exercício interessante que recomendo.
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