sábado, 11 de abril de 2020

A vida em tempos de coronavírus (23)


Opinião


Recebi um zap com uma relação de possíveis Judas, e eu deveria responder qual deles malharia hoje. Era uma relação de personalidades políticas que deveriam ir, todas, para um poste. Mas não me senti contemplado porque na relação não tinha “o eleitor do Bozo”, meu Judas preferido no sábado de Aleluia dessa semana santa.

Sempre tive implicância com a semana santa. Minha criação foi, ao mesmo tempo, católica e umbandista, e as datas religiosas eram sincretizadas e celebradas com missas, ladainhas e também com sessões espíritas de umbanda (macumba). Mas, não lembro de celebrações espíritas no período da semana santa. Pesquisarei.

As minhas  semanas santas sempre foram marcadas pelos rituais católicos que eram mórbidos. Bem menino, em nossas casas cobria-se os espelhos na semana santa, uma prática que, felizmente, logo entrou em desuso. No bairro onde eu morava, em São Gonçalo (RJ), bem próximo à igreja Matriz, realizavam-se procissões com umas imagens enormes representativas do martírio do Cristo na semana santa. Uma delas, que desfilava nas sextas-feiras santas, era um enorme Jesus morto, um terror.

Lembro-me bem que, praticando o catecismo escolar, nos dias de confissões aguardávamos a vez de entrar no confessionário na mesma sala da igreja onde guardavam as tais imagens das procissões. Elas ficavam embaixo dos altares, geralmente com algumas partes visíveis. No início a molecada brincava, mas os últimos na fila da confissão iam ficando sozinhos naquela sala,  sabendo que embaixo do altar tinha uma porra de um Cristo enorme e morto. Era apavorante.

Não me lembro de ter aparecido qualquer filho da puta de orientador religioso para contextualizar as histórias e atenuar nossas aflições. Hoje, ao saber sobre os inúmeros casos de pedófilos nas igrejas católicas, acho até que foi sorte nossa. Mas, tudo se apoiava em nosso medo. O último da fila de confissão ficava tão encagaçado que confessava qualquer merda  para ir embora dali o mais rápido possível.

Saindo da infância, a semana santa passou a ser o grande feriado, com a brincadeira da malhação do Judas no sábado de Aleluia. Até fazíamos a brincadeira, mas nosso bairro era uma tribo bem fechada e ninguém arriscava exibir as mazelas dos vizinhos colocando cartazes no Judas. Não que as fofocas não existissem, mas era quase impossível divulgá-las na oportunidade do Judas assegurando o anonimato. Também não havia críticas políticas. A malhação era considerada brincadeira de crianças e os que poderiam fazer as críticas não participavam. O resultado é que a malhação do Judas nunca teve muita graça para mim.

Passada a adolescência, eu cumpria os rituais religiosos familiares sem qualquer comprometimento, os católicos e os da macumba, achando esses últimos mais atrativos. Só mais tarde tentei me identificar religiosamente e com clareza. Os marcos foram muitos, mas a ópera rock Jesus Cristo Superstar, que assisti com mais de vinte anos, foi relevante. O texto sintético e forte das letras, as melodias lindas, a trama sobre as crises existenciais de Judas e Jesus e a identificação dos interesses políticos mexeram comigo.

 Acho que foi quando formei a noção que qualquer mito religioso pode ser analisado, compreendido, admirado e assimilado sem que haja necessidade de sua sacralização. Uma revelação e alívio! Foi quando o meu ateísmo, até então encabulado e ainda inibido por uma culpa cristã,  saiu do armário.  Bem mais tarde, já em fase adulta, eu me reencontraria com esse tema e me espermatozaria com a leitura  de Jose Saramago em seu maravilhoso O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Guardo lembranças de Jesus Cristo Superstar. Tenho  um LP em vinil, a fita em VHS e com o advento do Youtube várias vezes assisti trechos do filme. Recebi a dica de um amigo querido que nesses tempos de coronavírus o compositor e produtor musical da ópera, Andrew Lloyd Weber, tornaria disponível grátis, por 48 horas a partir da sexta-feira santa, a apresentação de uma montagem supermoderna, onde  estão mantidas as letras e as canções originais. Conferi. Está tudo lá.

Ainda acho intrigantes as cobranças de Judas ao Cristo por não ter realizado a revolução a que eles se propunham, apesar dos tantos poderes desse último, e os questionamentos a Deus por nunca ter compreendido porque ele, Judas,  tinha sido escolhido para praticar um crime que era do próprio Deus. 

 A montagem atual é uma das coisas mais belas desses últimos tempos. Mas, reafirmo, minha opinião é suspeita.
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Stream Jesus Christ Superstar for Free - This Friday at 7pm BST on The Shows Must Go On YouTube channel – Recuperado em 11/04/2020 de<https://www.andrewlloydwebber.com/the-shows-must-go-on/>

Andrew Lloyd Weber é o compositor das canções e produtor dos respectivos musicais a seguir: The Music of the Night do musical O Fantasma da Ópera, ou Don’t Cry for me Argentina do musical Evita ou  Memory do musical Cats ou, ainda, I Don't Know How to Love Him do musical Jesus Cristo Superstar.

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