terça-feira, 5 de maio de 2020

A vida em tempos de coronavírus (47)


Opinião


O uso da metáfora do “Ovo da Serpente”, tem sido  recorrente nas análises políticas sobre os dias que vivemos. Embora seja de origem mais remota, as referências atuais copiam o uso feito em um clássico do cinema do século XX, de mesmo nome, uma produção sueca de 1977, sob a direção e roteiro de Ingmar Bergman.

Nos minutos finais do filme, um dos personagens usa a metáfora referindo-se à  simbologia maléfica da serpente abrigada ainda em seu ovo que teria (nunca vi) a característica biológica de ser envolto em fina membrana que permite transparecer o seu conteúdo. O roteirista buscou representar as circunstâncias políticas da Alemanha nos anos 20 e 30 do século passado, referindo-se não apenas ao monstro que sairia do ovo, mas também à possibilidade – ignorada – das pessoas anteverem o produto daquela gestação. Boa coisa não sairia dali. Saiu o nazismo.

No Brasil, muitos analistas têm, justificadamente, feito uso da metáfora ao tratar do governo Bozo, mas é impressionante a recusa da sociedade em aceitá-la. Pior, ainda, muitas lideranças políticas também se recusam. Estamos vendo o que está sendo gestado – transparente, como um ovo da serpente  – mas recusamo-nos a aceitar.

Com ovo ou sem ovo, essa gestação iniciou já nas mobilizações de 2013 com o despertar da direita fascista associada ao capital privado e à lideranças evangélicas resultando nas candidaturas e eleições da trupe Bozo.

O que estamos vivenciando é apenas parte da serpente que ainda está em formação e se fortalecendo dentro do ovo. Mas, podemos vê-la. A truculência das intervenções do ex-capitão boquirroto; o desrespeito no tratamento de grupos marginalizados socialmente; as mensagens gestuais de violência e de recurso às armas; as ameaças diretas de ação violenta contra adversários políticos; o elogio à tortura e aos torturadores da ditadura militar; as mensagens de estímulo à violência repassada aos seus apoiadores em atos públicos; as referências diretas aos seus poderes praticamente desqualificando os demais poderes da república; a prática genocida de levar a população a desrespeitar o isolamento social de proteção contra o coronavírus; os discursos em frente a sedes militares endossando  manifestações de apologia ao golpe; as iniciativas de transformação da policia federal em uma policia política; o envolvimento familiar com milicianos e outros criminosos – enfim, uma lista longa e quase interminável de ações e atitudes permitem identificar as características de um ser maléfico e deformado que está sendo gestado, mas ainda por brotar.

Seus prosélitos sequer escondem propósitos. Fazem carreatas pedindo a implantação de um regime militar, além de publicações sem quaisquer constrangimentos tentando intimidar a sociedade. Afirmam que contam ao seu lado com as forças de segurança pública, as policias militares e as policias civis. Ameaçam a hierarquia militar dizendo que as bases estão com o capitão boquirroto e que o resto não importa - o monstro virá. Mais transparente do que isso, impossível. Essa gestação precisa ser interrompida, abortada. 

Na atual conjuntura, só poucos grupos sociais tem organização mínima para provocar esse aborto. Talvez apenas os trabalhadores urbanos organizados em sindicatos e os trabalhadores rurais organizados em seus movimentos de ocupação de terras. Quem sabe, também os estudantes. O restante da sociedade ainda desorganizada será convocada e poderá  aderir ao processo.

Porém, esse embate não se realizará enquanto as lideranças dos partidos que se relacionam com esses movimentos e as próprias lideranças dos movimentos não explicitarem o que está ocorrendo e as suas respectivas posições. A gestação prosseguirá enquanto ignorarem o ovo da serpente, como estão fazendo, e ficarem nessa política aguinha de batata e de conciliação,  como ocorreu no último 1º. de maio. Uma vergonha. Apostam em futuras eleições  e num processo de troca de poder sem rupturas, quando o ex-capitão boquirroto não cansa de repetir que apesar da sua vitória o processo eleitoral foi uma fraude em favor dos seus adversários.

O país está sendo corroído, assolado por uma pandemia biológica e uma pandemia econômica e política. Um monstro já está atuando, mas outro pior, a verdadeira serpente, ainda está para sair do ovo.


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