quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Pobres que apavoram

 

Opinião

 

Brincando recentemente com a lembrança do romance “1984” de George Orwell, registrei alguns termos que chamei de Novilíngua 2023.  Uma brincadeira para ajudar a pensar a vida e o mundo contemporâneo. Narrativa; Arcabouço; Estrutural; Ancestralidade,  foram alguns deles.

Ainda no finalzinho do ano, dei de cara com o termo Aporofobia que tem sido divulgado pelo padre católico Júlio Lancellotti  praticante de ações sociais com moradores de rua na cidade de São Paulo (SP). Sem entrar nas raízes etimológicas do vocábulo, vale o significado nos termos em que tem sido divulgado pelo padre Júlio:

Aporofobia significa rejeição ou aversão aos pobres

Não se trata de uma aversão à pobreza, mas aos pobres, e o padre Julio, em suas ações para mitigar as situações de miséria dos moradores de rua, também tem denunciado veementemente a Aporofobia.

As pregações do padre têm tido repercussões, ao ponto da Câmara de Vereadores da cidade de São Paulo, em dezembro último, num ato de escrotice extrema, ter aprovado um pedido de comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar organizações não governamentais (ONGs) que atuam na região da Cracolândia, mas cujo objetivo principal  – não é novidade – é constranger a atuação do padre Julio Lancellotti

O padre Julio parece estar cagando para a possível CPI. Já declarou que nem trabalha em ONG, que faz  trabalho da Arquidiocese, a Pastoral do Povo da Rua de São Paulo. A Arquidiocese,  por sua vez, já se manifestou oficialmente criticando a iniciativa do pedido de CPI.

Um termo, um vocábulo, não aparece na língua vindo do nada, ele é praticado enquanto faz sentido na sociedade onde circula. Não é um fato novo  a existência entre nós de pessoas que manifestam sua aversão aos pobres sem demonstrar aversão a pobreza. É tão comum que até se faz caricaturas disso.

Um personagem de sucesso na TV , Caco Antibes, fazia a caricatura da Aporofobia - “ Tenho horror a pobre!“ - era o bordão do personagem interpretado pelo ator Miguel Falabella. E em minha infância, ainda na era do rádio e antes da TV, o programa "Balança, mas não cai!" divertia as pessoas com a dupla caricata: Primo Rico e Primo Pobre interpretada pelos atores Paulo Gracindo e Brandão Filho, respectivamente.

A sociedade tem instituído alguns constrangimentos às piadas de humor com homossexuais,  negros, gordos e carecas,  que antes eram caricaturas comuns no anedotário  público, e hoje são politicamente incorretas. Porém, ainda não há constrangimentos para as exposições caricatas da Aporofobia.

Muitos implicam com o chamado politicamente incorreto. Não me excluo. Busco me corrigir, mas não é uma reação espontânea, é elaborada. Acredito que o incômodo desaparecerá com o fim da minha geração, as que virão reagirão melhor. Mas, o fato é que o constrangimento representa um estado de amadurecimento cívico e social. Sabemos a origem das proibições, e a contrapartida é que elas carregam consigo uma vontade de desmontar visões preconceituosas e, consequentemente, discriminatórias.

Enquanto isso segue a realidade social com seus conflitos e, felizmente, existem padres Julios para pregar a distinção entre pobres e pobreza, adentrando em espaços onde a militância tradicional nem mesmo se atreve, e fazendo suas mensagens ressoarem com tal potência que chega a abalar e apavorar canalhas com armaduras de mandatos parlamentares que além de aporófobos são padrejuliófobos.

Em tempo: continuarei registrando termos da Novilíngua, agora 2024.

 

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