Leituras para distrair
Nas décadas
de 50 e 60, minha infância, vivíamos em torno do rádio. Nas décadas seguintes
as famílias se aglutinaram em torno da televisão até se isolarem, penduradas
nas atuais redes sociais da internet. A programação diária marcava as etapas do
dia. A manhã, o horário do almoço, as tardes e as noites tinham como marcos os
programas de rádio. As emissoras eram as grandes da época, aqui no Rio. A
Nacional, a Tupy e a Mayrink Veiga, essa última fechada pela ditadura de 64. As
tardes e noites diárias eram marcadas pela sequência: a oração da Ave Maria que
nunca gostei, sempre me pareceu mórbida, o Cavaleiro da Noite, herói de capa e
espada com dupla identidade, o violão de Dilermando Reis, o detetive Anjo e
Jerônimo o herói do sertão. Depois, o repórter, as novelas e os programas
humorísticos, quando não era noite de futebol. Nos finais de semana, lá em
casa, Cesar de Alencar e Paulo Gracindo tomavam conta do áudio.
Entre os
artistas preferidos, Jamelão era um ídolo. Os programas tinham janelas de
horários para os diversos ídolos do rádio. Dalva de Oliveira, Emilinha,
Marlene, Ângela Maria, Jorge Veiga, entre outros. Não pretendo resgatar a
história, meu objetivo é lembrar Jamelão. Para nós sempre presente porque quando
sua voz não estava no rádio as suas melodias estavam no cantarolar do meu pai
ou da minha mãe. Mas, especialmente no cantarolar do meu pai – assim incorporei
uma admiração pelo artista.
Eu quarentão
tive a oportunidade de assisti-lo em uma apresentação de bar. O mestre cantor
já estava com idade avançada. Lembrei-me dos desfiles de escolas de samba
quando os repórteres de TV, preto e branco, ainda caminhavam pela avenida procurando ídolos
populares entres os desfilantes. Jamelão, sempre com um aparente mau humor, ficou
famoso por se recusar a ser chamado de “puxador” de samba – ele era um cantor, intérprete
– e fazia questão de distinguir entre “sambistas” e “sambeiros” desqualificando
esses últimos que eram aqueles integrantes de última hora, que não viviam o
cotidiano das agremiações. Falecido em 2008, ele viveu o bastante para ver que
as escolas se transformaram em escolas de sambeiros.
Essa
digressão vale por conta do show que assisti no teatro Rival, no Rio, em
17/01/2018, “Um tributo a Jamelão” com as artistas Áurea Martins e Ana Costa - revivendo
as gravações do mestre. Simples, sem frescuras, não foi um show biográfico. Um show
onde duas maravilhosas artistas exibiram seus talentos e bom gosto
interpretando pérolas antes gravadas pelo rabugento e eterno ídolo da Mangueira.
Uma preciosidade. Arranjos irrepreensíveis (não me cabe resgatar a ficha
técnica do show) de uma sensibilidade e
beleza difíceis de traduzir. Viajei na emoção e nas lembranças.
Em certa
época adquiri uma coletânea de CDs de Jamelão para presentear minha mãe. Não
foi possível porque a natureza, implacável, determinou sua invalidez e fim de vida sem o recebimento do presente. Guardo
os CDs comigo e ouço, raramente. Ouvindo as interpretações da Áurea e da Ana
naveguei no tempo, até a infância. O bom gosto de quem determinou o repertório
deve ser exaltado. O cantar de ambas, em
sambas canções que todos acompanhavam, não ficou a dever a nenhum dos grandes
intérpretes internacionais do blues americano – não ficaram devendo nada a qualquer
das divas mundialmente reconhecidas. Além do mais, tinha a Ana Costa. Uma das vozes
mais belas que conheço.
Luis Carlos
da Vila, um dos grandes poetas do samba, compôs uma oração em forma de samba. “
“Por um dia de graça”. O samba diz
assim: “Chegou o áureo tempo de justiça. Ao esplendor do preservar a
Natureza. Respeito a todos os artistas. A porta aberta ao irmão, de qualquer
chão, de qualquer raça. O povo todo em louvação por este dia de graça”. Assistir à Ana Costa foi algo assim. Uma
noite de graça.
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