sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Uma noite de graça

Leituras para distrair


Nas décadas de 50 e 60, minha infância, vivíamos em torno do rádio. Nas décadas seguintes as famílias se aglutinaram em torno da televisão até se isolarem, penduradas nas atuais redes sociais da internet. A programação diária marcava as etapas do dia. A manhã, o horário do almoço, as tardes e as noites tinham como marcos os programas de rádio. As emissoras eram as grandes da época, aqui no Rio. A Nacional, a Tupy e a Mayrink Veiga, essa última fechada pela ditadura de 64. As tardes e noites diárias eram marcadas pela sequência: a oração da Ave Maria que nunca gostei, sempre me pareceu mórbida, o Cavaleiro da Noite, herói de capa e espada com dupla identidade, o violão de Dilermando Reis, o detetive Anjo e Jerônimo o herói do sertão. Depois, o repórter, as novelas e os programas humorísticos, quando não era noite de futebol. Nos finais de semana, lá em casa, Cesar de Alencar e Paulo Gracindo tomavam conta do áudio.

Entre os artistas preferidos, Jamelão era um ídolo. Os programas tinham janelas de horários para os diversos ídolos do rádio. Dalva de Oliveira, Emilinha, Marlene, Ângela Maria, Jorge Veiga, entre outros. Não pretendo resgatar a história, meu objetivo é lembrar Jamelão. Para nós sempre presente porque quando sua voz não estava no rádio as suas melodias estavam no cantarolar do meu pai ou da minha mãe. Mas, especialmente no cantarolar do meu pai – assim incorporei uma admiração pelo artista.

Eu quarentão tive a oportunidade de assisti-lo em uma apresentação de bar. O mestre cantor já estava com idade avançada. Lembrei-me dos desfiles de escolas de samba quando os repórteres de TV, preto e branco,  ainda caminhavam pela avenida procurando ídolos populares entres os desfilantes. Jamelão, sempre com um aparente mau humor, ficou famoso por se recusar a ser chamado de “puxador” de samba – ele era um cantor, intérprete – e fazia questão de distinguir entre “sambistas” e “sambeiros” desqualificando esses últimos que eram aqueles integrantes de última hora, que não viviam o cotidiano das agremiações. Falecido em 2008, ele viveu o bastante para ver que as escolas se transformaram em escolas de sambeiros.

Essa digressão vale por conta do show que assisti no teatro Rival, no Rio, em 17/01/2018, “Um tributo a Jamelão” com as artistas Áurea Martins e Ana Costa - revivendo as gravações do mestre. Simples, sem frescuras, não foi um show biográfico. Um show onde duas maravilhosas artistas exibiram seus talentos e bom gosto interpretando pérolas antes gravadas pelo rabugento e eterno ídolo da Mangueira. Uma preciosidade. Arranjos irrepreensíveis (não me cabe resgatar a ficha técnica do  show) de uma sensibilidade e beleza difíceis de traduzir. Viajei na emoção e nas lembranças.

Em certa época adquiri uma coletânea de CDs de Jamelão para presentear minha mãe. Não foi possível porque a natureza, implacável, determinou sua invalidez e  fim de vida sem o recebimento do presente. Guardo os CDs comigo e ouço, raramente. Ouvindo as interpretações da Áurea e da Ana naveguei no tempo, até a infância. O bom gosto de quem determinou o repertório deve  ser exaltado. O cantar de ambas, em sambas canções que todos acompanhavam, não ficou a dever a nenhum dos grandes intérpretes internacionais do blues americano – não ficaram devendo nada a qualquer das divas mundialmente reconhecidas. Além do mais, tinha a Ana Costa. Uma das vozes mais belas que conheço.

Luis Carlos da Vila, um dos grandes poetas do samba, compôs uma oração em forma de samba. “ “Por um dia de graça”. O samba diz assim: “Chegou o áureo tempo de justiça. Ao esplendor do preservar a Natureza. Respeito a todos os artistas. A porta aberta ao irmão, de qualquer chão, de qualquer raça. O povo todo em louvação por este dia de graça”. Assistir à Ana Costa foi algo assim. Uma noite de graça.

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