Leituras para distrair
O que caracteriza a classe no capitalismo não é o fato de se
trabalhar num mesmo prédio, numa mesma empresa, ter um mesmo patrão, realizar a
mesma atividade, nem mesmo a grana que se recebe como salário.
O pertencimento de classe é determinado pelo papel do indivíduo
no modo de produção vigente. Quem vende a sua força de trabalho como a única
mercadoria que possui para levar ao mercado de trocas e poder sustentar suas
necessidades pertence a classe chamada trabalhadora que, em outras épocas, foi
chamada de proletariado.
Quem compra o direito de uso dessa força de trabalho pagando
um preço chamado salário, e se apropria do produto do uso dessa força, é membro
de outra classe. Esse comprador é um patrão e pertence a classe capitalista que
tem também outros integrantes conforme os seus papeis no mecanismo de
circulação do capital.
As classes não são homogêneas. Há diversidade de situações e
de interesses entre seus membros. Tanto um gerente de alto escalão em uma
grande empresa e que recebe salário altíssimo, quanto aquele empregado de
salário mais humilde e que recebe uma merreca na mesma empresa, ambos pertencem
à classe trabalhadora.
O dono de uma carrocinha de pipoca que paga salário a um menino
como empregado ajudante, está na posição de um capitalista. Um médico que trabalhe
para um hospital, mas que também tenha um consultório próprio com empregados
para limpeza, atendimento enfermagem etc. estará no papel de membro da classe
trabalhadora como empregado do hospital, e no papel de capitalista enquanto
dono do consultório.
Um aspecto importante dessa relação de compra e venda: salário
x força de trabalho é que se trata de uma relação de troca legal, regulamentada
e socialmente aceita por ambas as partes. Não se trata de um roubo ou burla,
embora em quase a totalidade das vezes haja um enorme desequilíbrio de poder na
relação e no estabelecimento de seus termos.
Outro aspecto, talvez fundamental dessa relação, é que o trabalhador não vende o seu trabalho.
Ele vende a sua força de trabalho sobre a qual o comprador passa a ter o
direito uso como qualquer outra mercadoria que tenha comprado, assim como o
trabalhador faz o que quiser do salário que receber pela venda.
Na medida em que o comprador (capitalista) também possui
materiais, ferramentas, instalações e outros recursos ele põe em ação a força
de trabalho que comprou e se apropria da mercadoria que essa força produzir
durante o tempo a que tem direito.
A força de trabalho vendida pode ser de qualquer natureza.
Manual ou intelectual. O trabalhador pode ter qualificação profissional ou não.
E a atividade pode ser exercida em qualquer ambiente – num escritório, numa
oficina, na rua ou mesmo na residência do trabalhador - com ou sem o auxílio de
ferramentas ou instrumentos que, por sua vez, podem até ser da propriedade e
responsabilidade do trabalhador (situação ideal para o capitalista).
Desse modo, quem pertence a classe dos trabalhadores certamente tem interesses comuns com outros
integrantes da sua classe, ainda que não estejam todos reunidos no mesmo local,
vestindo uniformes idênticos, trabalhando para um mesmo patrão, na mesma
empresa, ou assentados em diferentes situações econômicas.
Não é preciso desenhar para se concluir que esses interesses
conflitam com os interesses dos capitalistas. Não porque uns sejam “bons” e
outros “maus”. O pertencimento de classe não é uma questão de separação entre
boas e más pessoas. Não se trata de uma relação moral nem ética. Os interesses
são naturalmente conflitantes porque o modo de produção capitalista funciona
assim.
Esse conflito é chamado de luta de classes e não é uma
invenção de sindicalistas, socialistas ou comunistas. A luta de classes é uma
decorrência lógica das relações da produção capitalista que a classe de maior
poder sempre tenta esconder porque assim esconde a sua posição privilegiada na
relação.
A evolução tecnológica das ferramentas, máquinas e instrumentos
de produção, ou seja, dos meios de produção, modificou completamente a imagem tradicional
de classe trabalhadora como grupo de empregados reunidos no galpão de uma
fábrica realizando atividades orientadas por uma hierarquia de monitores,
supervisores, gerentes ou coisa que o valha.
As modificações são de tal ordem que há mesmo o caso de
trabalhadores nem se reconhecerem como integrantes de sua classe. Esse “não
reconhecimento” já existia no caso de trabalhadores com diferentes status
econômico. Sempre foi o caso dos empregados de altos salários e aqueles que
ganham merrecas. Mas, a evolução
tecnológica trouxe novas situações. Há trabalhadores que se imaginam como
capitalistas, empreendedores ou “prestadores de serviços” quando, na verdade,
estão no limite máximo das aspirações do capital, ou seja, apropriar-se do produto
do seu trabalho ao menor custo possível.
O fato é que a realidade tomou outros aspectos, mas as
relações de produção permanecem porque elas são inerentes ao capitalismo. A
luta de classes existirá enquanto existirem as classes, e essas só deixarão de
existir quando o modo de produção capitalista for superado.
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Caro Jorge,
ResponderExcluirDidática sua explanação. Porém,
acredito que no contexto atual o capitalismo se expandiu a tal ponto que sua maior fonte de acumulação já não vem mais do trabalho, mas do chamado capital improdutivo. Michael Hudson chama de FIRE - Finanças, Seguro e Mercado Imobiliário. São os parasitas. Nos Estados Unidos este capital representa 77% do PIB.
Discutindo o poder, Fiori propõe uma tese de que a acumulação capitalista se deu em função do poder do Estado. Ele inclusive cita Adam Smith que teria se surpreendido com o fato dos países ibéricos, a época, acumularem riqueza não como decorrência do mercado, mas em função do uso do poder do Estado que, através das armas, saqueou os povos nativos das novas terras invadidas. Smith teria observado que sua teoria de acumulação estava incompleta porque não incluía a variável Poder. An passan, Fiori faz referência a Marx que, por ser um humanista, nunca pensou o Estado.
As análises de Fiori em relação a visão de Marx em relação ao poder coincidem com as análises de Hobesbawm que identifica uma das lacunas na obra marxiana, a falta de uma teoria política. Segundo ele, quem contribuiu pra sanar tal lacuna foi Gramisc, um grande estudioso da obra de Maquiavel.
Faço está breve digressão pra propor um outro contexto no atual estágio da luta de classes: a luta contra o capital parasita.
Acredito que esta luta só terá alguma chance de avançar se a classe trabalhadora mergulhar fundo na luta pela hegemonia dos Estados Nacionais, ampliando a ocupação das suas instituições e seus processos políticos.
Atualmente os grandes players da especulação como a Black Rock, Vangarden e outros acumulam investimentos em valores equivalentes ao PIB dos Estados Unidos. Recentemente, em uma entrevista ao GGN, Nicolelis informou que o objetivo dos big money, o big oil e a big tech é a destruição dos Estados Nacionais. Esta, no meu entendimento, é a luta central da humanidade, com desdobramentos inclusive na questão climática.
Grande Hercílio, obrigado pelas observações. Desde já, abraços.
ExcluirFarei três comentários sem a intenção de desenvolver debate porque acho que seria inadequado faze-lo nesse espaço.
Comentário 1:
Para manter a dinâmica de funcionamento do capitalismo, os capitalistas acumulam parte da mais valia para expandir a produção e, assim, o processo se repete com a circulação do capital. Esse é o mecanismo básico de funcionamento do capitalismo.
Nesse mecanismo, realizado pelos diferentes capitais, há mediações, concorrências e apropriações. Contudo, em que pese a possibilidade de diferentes preços de mercadorias no processo de circulação, só a força de trabalho é capaz de produzir valor, ou seja, só a força de trabalho é fonte concreta de valor que permite a acumulação.
Como esse valor ou mercadoria é introduzido no mercado e como os capitais concorrendo entre si se apropriam de partes dele é uma história a parte. Assim, salvo melhor entendimento, acho um equívoco afirmar, em qualquer circunstância, que o trabalho, ou melhor, o produto da força de trabalho, não seja a origem ou fonte da acumulação.
Comentário 2:
Eu não conseguiria debater com pensadores de qualificação reconhecida, mas sempre entendi que O Capital, obra máxima do velho Mouro, é uma obra indissociável da categoria “estado capitalista” – a obra inteira considera isso. Se isso não for uma teoria política, uma teoria do estado, pode ser que haja uma incompreensão minha do que isso significa. Mas, até saber mais, eu não concordo com a afirmação.
Comentário 3:
A luta central da humanidade – incluindo a sua face mais concreta e atual que é a crise climática, continua sendo a necessidade de superação do modo de produção capitalista. Trata-se de um modo de produção cuja dinâmica aponta como futuro a extinção da própria espécie. Como esse processo se dará, se a humanidade terá tempo hábil para realiza-lo eu não sei dizer. ###