Leituras para distrair
Somos
assim. Uma sociedade cujos troncos fundamentais de criação e desenvolvimento
foram: uma diversidade de povos nativos invadidos em seus espaços de vida,
hábitos e costumes; um contingente europeu oriundo do projeto colonizador do
império português, e uma enorme população trazida escravizada do continente
africano seguindo a lógica mercantil da colonização.
O grupo
europeu, tipicamente branco em suas características étnicas, impôs-se pela força
como poder socioeconômico e sociopolítico. Mas, o mesmo não aconteceu na dimensão sociocultural. Os nativos, que
passaram a ser chamados de indígenas, assim como os escravizados, que passaram
a ser genericamente referidos como negros, eram grupamentos sociais que traziam
consigo histórias e culturas distintas, riquíssimas em seus conteúdos, além de
seculares, com enraizamentos profundos e suficientes para não desaparecerem.
Esses
grupos aglutinaram-se formando uma sociedade miscigenada que veio a ser
predominante, mas completamente impregnada e marcada pelas raízes culturais dos negros e
indígenas, apesar das agressões que esses dois grupos sofreram em seus processos
históricos. Entre essas marcas congênitas e determinantes das sociedades negra
e indígena herdamos: a oralidade. É um fato. Carregamos a oralidade como um
traço fortíssimo, resultado e descendência direta das sociedades que nos deram
origem, sociedades sem representação escrita de seus conhecimentos e culturas.
Sociedades ágrafas.
Seguindo a
sua lógica, o poder colonial fez valer no
plano institucional os seus valores culturais, positivos em inúmeros aspectos,
diga-se de passagem, mas também impôs, na medida em que conseguiu, a negação dos
nossos valores culturais de origens indígenas e africanas. Uma perda para nós.
Ocorre que a
cultura se impõe como prática social. Ela não é determinada por leis e
decretos. Daí que, felizmente, mesmo de forma inconsciente, fizemos da oralidade
um dos aspectos característicos de nossa identificação cultural. Os registros
literários nunca foram a forma original de guardar nossas histórias, nossas relações
interpessoais ou relações com o mundo. Nem as nossas impressões, fantasias e experiências com esse mesmo mundo. Obviamente
incorporamos os registros literários como prática, aliás importantíssima, mas
tal prática veio bem tarde em nossa formação.
A nossa
praia sempre foi outra. Praticamos a transmissão de conhecimentos pela fala,
pelo contar de histórias, pelas narrativas dos causos. Pela repetição dos
aforismos populares, pelo gosto das conversas nas esquinas, tanto entre os
moleques nas ruas como entre as gerações que se tornam maduras. As histórias e
ensinamentos propagados pelas conversas nos espaços comunitários ou familiares.
Pelos papos, pelo anedotário. Pelas conversas nas esquinas e nessa instituição
nacional: os botecos. Ignorar ou desvalorizar isso é não perceber o
Brasil em sua inteireza.
É com essa
percepção e sentimento que tenho acompanhado com imenso prazer e interesse, entre
as incontáveis “laives” que impregnaram as redes sociais informáticas nesses
tempos de pandemia, a “Tendinha do Coletivo Sindicato do Samba”.
A
iniciativa vem sendo desenvolvida com a participação permanente dos artistas: Paulão
7 Cordas, Marquinho China e Marquinhos Diniz, além do jornalista e
produtor cultural Camilo Árabe que opera como um mediador e coordenador da
Tendinha. Até onde identifiquei, teria estreado em 29/05/2020.
A
apresentação se desenrola sem muitos recursos de produção, mas suficiente. O
ambiente é de uma conversa na cozinha, na área dos fundos, no quintal ou num
balcão de uma Tendinha. O tema, claro, é
o Samba.
Os seus
protagonistas dispensam apresentações. Abordam suas experiências que não são
poucas conversando entre si e resgatando músicas, comentando e trocando histórias
sobre o samba e seus personagens. São parceiros trocando histórias e aventuras
curiosas e interessantes para quem gosta de samba ou quiser saber sobre ele.
Nem sei se pararam para pensar na importância do trabalho que estão realizando.
Geralmente
recebem convidados - ícones do samba – monumentos vivos dessa manifestação
popular tão importante, marca indelével do nosso país e, particularmente, do
Rio de Janeiro. Cantam e contam sobre suas obras e suas histórias. Em grande
parte figuras simples e modestas, muitos ainda gatinhando no aprendizado de usos
desses recursos de internet que se tornaram imperativos nos dias atuais. Mas, antes
de tudo e principalmente: gigantes virtuoses em sua arte.
Tomara que o
programa continue – se não continuar, já deu sua contribuição que não pode ser
ignorada. Eu e alguns amigos – à distancia – fazemos um coro de assistência e
audição. Em torno de um terminal de vídeo. Fogueira do século XXI. Cantarolamos
e rimos em nossas casas. Trocamos comentários. Molhamos nossos cantarolares e
sorrisos com umas cervejas e, certamente, com uma deliciosa cachaça. A Tendinha
segue. Eu paro por aqui, lembrando Martinho da Vila:
“Os meninos
à volta da fogueira. Vão aprender coisas de sonho e de verdade. Vão perceber
como se ganha uma bandeira. E vão saber o que custou a liberdade. Palavras são
palavras não são trovas. Palavras deste tempo sempre novo. Lá os meninos
aprenderam coisas novas. E até já dizem que as estrelas são do povo” (À volta da fogueira - Martinho da Vila, Rui
Mingas e Manoel Rui)
Acho muito
difícil que alguém que se embale nesse tipo de sonho faça opção pelo fascismo
como forma de sociedade ou de liderança política.
###
Nenhum comentário:
Postar um comentário