domingo, 16 de agosto de 2020

Quarenta e sete por cento


Opinião


Qualquer que seja o rumo da guerra, uma coisa é certa: o ex-capitão Bozo ganhou a importante batalha sobre o juízo da sua ação no combate à pandemia. Caminhamos para 110 mil mortos nos próximos dias e com expectativas trágicas para os meses seguintes,  mas essa quantidade enorme de mortos parece não afetar nossa sociedade.

A tragédia só impressiona a visão que inclui o óbito de alguém próximo ou querido. No mais, nossa sociedade reage como se estivesse cagando e andando para o que significa essa multidão de cadáveres. A morte por coronavírus no Brasil está completamente banalizada e a propagação do vírus continua sem qualquer ação consistente de controle e sem sinal de reversão. A fábrica de mortos mantém  sua produtividade de 1000 (mil) mortos por dia.

As mortes já não espantam. Não surpreendem. Não chocam. Nem são notícias que mereçam destaques, salvo quando associadas a algum outro fato que “adicione valor  ao evento. Um nome conhecido, uma situação inusitada, um fato pitoresco ou de morbidez acentuada. De resto é complacência total. Ou seria cumplicidade?

O ex-capitão Bozo conseguiu. É importante admitir. Emplacou seu discurso e comportamento. Seu rebanho arrastou consigo a sociedade, mesmo que muitos possivelmente não quisessem acompanhar a boiada, mas se deslocam no mesmo sentido, talvez  para evitar o atropelamento. Assim, validam o discurso do Bozo.  Vejamos as pesquisas. Que pessoas são essas que isentam completamente os responsáveis por essa prática genocida adotada em relação à pandemia no Brasil?

Mergulho em Hannah Arendt. Afinal, essas pessoas que apoiam e isentam o Bozo não são especialmente malignas, malévolas. São pessoas comuns, normais. Assustadoramente normais, como disse Arendt referindo-se ao perfil dos carrascos nazistas. Uma normalidade mais apavorante do que suas próprias atrocidades,  dizia ela, porque aponta  um tipo humano criminoso que comete seus crimes sem, nem mesmo, saber ou sentir que está agindo errado. A filósofa alemã pagou preço alto por essas suas observações.

São pessoas que abrem  mão da sua capacidade de pensar e distinguir o bem do mal. Abrem mão da sua humanidade. E o mal,  disse  Arendt, é como um fungo que se alastra e provoca uma espécie de colapso moral na sociedade. Afeta inclusive as vítimas. Impede a capacidade de pensar.

Aqui, no Brasil, vamos para as ruas, abrimos as escolas, enchemos os ambientes públicos, mas  não nos sentimos responsáveis. Cumprimos ordens. Hannah Arendt chamou isso de *a banalidade do mal*.

Minhas observações podem ser repetições toscas de outras verdadeiramente  importantes e mais consistentes que já trouxeram a memória de Hannah Arendt para a análise dos tempos atuais. Mas, é o jeito que consigo fazer. Precisamos desse  exercício porque também nós estamos no limiar dessa banalidade.

Enfrentamos a falta total de expectativas de um encaminhamento sadio. Não é possível deixar que a pandemia siga esse caminho, devorando vidas indefesas até que aconteça um imaginado e esperançoso equilíbrio por saturação de oportunidades de contaminação.

Parcela significativa da sociedade ainda não está infectada pelo coronavírus, mas está doente. Está infectada pelo fungo de um mal que embota a sua capacidade de pensar e reagir. Vê com uma naturalidade apática o extermínio de membros de populações em comunidades carentes, entre elas as comunidades indígenas. Absurdo!

Essa parcela de sociedade banaliza a quantidade de mortes e contaminações. Adota sem rebeldia as decisões de governantes genocidas. Decisões sem qualquer sustentação que não seja atender o interesse de grupos de poderes políticos e econômicos.

Estamos apenas cumprindo ordens, não somos responsáveis? Foi assim que a sociedade alemã, contaminada pelo fungo do mal, banalizou as patrulhas oficiais e milícias que aprisionavam  cidadãos judeus e os encaminhava para o holocausto. Tudo dentro da lei e da normalidade.

Não nos iludamos. Estamos em meio a uma pandemia e um golpe político. Um golpe de estado que ainda não acabou. A pretensão e crendice eleitoral que abre mão de qualquer prática dos valores esquerdistas e que  evita tratar qualquer  tema  que ponha em risco o sonho de uma solução via vitória eleitoral é um suicídio.  #####

NOTA
Citado no texto:
Arendt, Hannah - Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal – Ed. Cia. das Letras, São Paulo, 1999
#####















2 comentários :

  1. Excelente, Jorge.
    Estamos Submetidos à Banalização do Mal.

    ResponderExcluir
  2. Excelente texto, Jorge. Vem complementar e enriquecer demais as discussões sobre o tema nesta semana. Muito obrigada.

    ResponderExcluir