sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Um machado de duas lâminas



Leituras para distrair


Coisas lindas. O samba do Salgueiro 2019 e um texto sobre a letra do samba, elaborado pelo professor Luis Antonio Simas. Quanta beleza compõe a nossa cultura.

Não se trata de opção religiosa ou de fé. Cada um que tenha, ou não, aquela que lhe aprouver. Trata-se de identificar o sublime que existe em nossa formação miscigenada, em nossas origens, cuja história e relatos alguns aprendizes de fascistas tentam abafar.

Mas, não tem jeito! É uma beleza que escorre por entre as frestas de censuras desses filhos das putas. Beleza que explode nas manifestações populares e se esparrama permitindo tomarmos consciência de quem somos. O verdadeiro processo de aprendizado, segundo Paulo Freire. Uma beleza que, cantando,  responde um melodioso “não!” aos racismos e às discriminações preconceituosas que impregnam a nossa sociedade.

O texto do Simas (que copiei sem autorização e sem qualquer constrangimento) pode ser lido abaixo. Uma aula, como sempre. Também incluí um link para acesso ao samba do Salgueiro. Entre os comentários do youtube há um que gostei muito “Foram fazer um samba enredo e fizeram um hino”.

Mas, eu também aproveitei a deixa  para divulgar um vídeo interessantíssimo e digno de elogios e admiração. Trata-se de uma co-produção da Globo e de um canal de televisão Francês, ainda nos anos 70 do século 20, cujo  título é “O Poder do Machado de Xangô”.  

Elaborado sob a orientação do antropólogo Pierre Verger, o vídeo do Globo Reporter – Pesquisa é um exemplo de reportagem completamente distante das atuais produções globais. Pelos creditos não consegui identificar o autor do texto, mas é impecável e merece ser divulgado. Especialmente as  narrativas de introdução e a narrativa final. Fica a sugestão para quem desejar.

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O texto do Simas - (Copiado sem autorização do Facebook do Luis Antonio Simas – link abaixo)


Luiz Antonio Simas - 2 de fevereiro às 18:03 · 

Atendendo a um pedido e sendo simples, escrevi sobre o sambão do Salgueiro para quem não tem iniciação nos ritos dos candomblés e umbandas e quer sacar melhor a letra macumbada
Simbora:

"Vai trovejar!
Abram caminhos pro grande Obá"
- O samba começa com a evocação a um elemento da natureza ligado a Xangô e Iansã: o trovão. Obá é o rei ou governante entre os iorubás. Não confundir com a orixá Obá, que aparecerá no samba.

"É força, é poder, o Aláfin de Oyó Oba Ko so! Ao Rei Maior!"
- Alafin é um título dos obás, governantes do reino iorubá de Oyó. A tradição diz que o Xangô histórico foi o quarto alafin de Oyó, filho de Oranian e Torosi.
Oba Ko so - significa em português algo como "o rei não se enforcou" ou "o chefe não morreu" e se refere ao mito em que Xangô teria se enforcado por conta de uma vergonha que passou em Oyó. Resumo rapidamente: ao ganhar o poder de lançar fogo pela boca (o nascimento dos raios), Xangô não teve cuidados e, deslumbrado com o poder obtido, incendiou sem querer o próprio palácio. Envergonhado, foi para a floresta e se enforcou. Os partidários de Xangô, todavia, começaram a dizer que ele não tinha se enforcado, mas virado um poderoso orixá, encantado no fogo, deixando na terra um grande buraco. Obá ko so é uma expressão presente em um canto muito popular na cerimônia da "Fogueira de Xangô", uma das mais fortes do candomblé. O rei está vivo! O Rei não se enforcou!, diz o Salgueiro.

"É pedra quando a justiça pesa
O Alujá carrega a fúria do tambor""
- Referência a Xangô como um orixá da justiça, característica muito marcante do orixá no Brasil, e que tem a pedra (sobretudo a pedra de raio) como um de seus elementos.- o alujá é o toque clássico de Xangô nos candomblés. Em português, "alujá" significa algo como orifício ou perfuração. Provavelmente, como Verger chegou a anotar, o nome tem relação com o mito de que Xangô, ao virar um orixá, deixou um buraco na terra ao se encantar no fogo. O alujá é um toque rápido e triunfal, evocando os poderes do orixá que dança com a força e a beleza das grandes labaredas.

"No vento, a sedução (Oyá) O verdadeiro amor (Oraiêiêô) E no sacrifício de Obà (Obà Xi Obà) Lá vem Salgueiro!"
Referência ao mito das três mulheres de Xangô. Iansã - a senhora dos ventos - era a paixão manifesta no desejo da carne. Oxum (aqui citada pela sua saudação: oraieiêô) é a esposa sensual, devotada e ciumenta (os ciumes de Xangô também são terríveis). E Obá foi aquela que, se sentindo a menos amada, perguntou a Oxum o que ela tinha feito para ter o amor do rei. Oxum mentiu para Obá. Cobriu a orelha com um lenço e disse que Xangô a amava porque ela tinha oferecido a ele sua própria orelha, dentro de uma gamela - Xangô só come em gamelas de madeira, nunca em louças - com amalá-ilá (a comida predileta de Xangô, feita com quiabo). Obá cortou a orelha, acreditando em Oxum, e ofereceu a Xangô. Horrorizado, Xangô expulsou Obá de seu reino. Aqui eu fiz a seguinte leitura: o samba diz que "no sacrifício de Obá / lá vem Salgueiro". Será uma possível referência ao sacrifício amoroso de colocar um carnaval na rua?

"Mora na pedreira, é a lei na Terra Vem de Aruanda pra vencer a guerra Eis o justiceiro da Nação Nagô Samba corre gira, gira pra Xangô"
Aqui já temos uma transição. É Xangô saindo da África e chegando ao Brasil. A pedreira é, especialmente na diáspora, considerada um elemento do orixá, detalhe presente com muita força na umbanda. O trecho também fala da Aruanda, uma espécie de lugar espiritual de onde vinham e para onde retornariam os espíritos ancestrais. Há quem diga que a Aruanda faria referência ao porto de Luanda, em Angola. De toda forma, a Aruanda é um lugar encantado de origem e retorno muito mais presente nos mitos da umbanda do que nos do candomblé. A gira é a sessão das umbandas e encantarias. Defendo que a palavra seja uma corruptela de canjira. A canjira e o nome dado ao conjunto de danças rituais, realizadas em um grande círculo, nos terreiros muxicongos, angolo-congoleses, e nas casas de umbanda e quimbanda, unindo o conjunto de toques, transes e mandingas

"Rito sagrado, ariaxé
Na igreja ou no candomblé
A benção, meu Orixá!
É água pra benzer, fogueira pra queimar
Com seu oxê, chama pra purificar"
- O ariaxé é o local do terreiro onde estão enterrados os diversos fundamentos secretos da casa. Há quem se refira também a ariaxé para designar o local onde são preparados os banhos com as folhas sagradas dos orixás ou mesmo o quarto de recolhimento de noviças que estão fazendo a iniciação.
- "Na igreja" pode ser referência ao sincretismo ou a um antigo rito de alguns velhos terreiros de candomblé, hoje praticamente extinto: as iaôs, no processo final de iniciação, costumavam percorrer até sete igrejas.

- O oxé é a grande ferramenta de Xangô; um machado de dois gumes
"Bahia, meus olhos ainda estão brilhando
Hoje marejados de saudade
Incorporados de felicidade
Fogo no gongá, salve o meu protetor
Canta pra saudar, Obanixé kaô!
Machado desce e o terreiro treme
Ojuobá! Quem não deve não teme!"
- A evocação ao estado da Bahia é certamente referência ao enredo de 1969 do Salgueiro: Bahia de todos os deuses. Naquele carnaval, pela primeira vez, o falecido professor Júlio Machado desfilou como destaque com a fantasia de Xangô do Salgueiro.
- O gongá é uma espécie de altar nas umbandas, onde ficam as imagens das entidades. Nas umbandas, aliás, Xangô costuma ser sincretizado principalmente com São Pedro, São João ou São Jerônimo.
- Obanixé Kawó kabiyèsílé é a grande saudação de Xangô. Algo no sentido de "saúdem o rei que está na terra/na casa".
- Ojuobá é um título de alta dignidade no candomblé, dado a pessoas notáveis e de grande sabedoria na casa de Xangô. Literalmente: os olhos do rei.

"Olori xango eieô
Olori xango eieô
Kabesilé, meu padroeiro
Traz a vitória pro meu Salgueiro."
O refrão! Aqui o bicho pega e o babado é forte. Orunmilá, o orixá da sabedoria oracular e sabedor dos destinos, diz que existem três espiritualidades importantíssimas relacionadas com Olori, que adquirimos antes mesmo do nosso nascimento: Aiama é a espiritualidade que escolhemos no Orum, aos pés de Olofin antes da grande e misteriosa descida para a vida terrena. Orunmilá testemunhou essa escolha.
Ainda no Orum, escolhemos também Akulela; um conjunto de atributos, virtudes, qualidades, defeitos, que carregaremos pela vida. Potencializar os irês (coisas boas) e afastar nossas tendências negativas ao longo da vida é processo que inclui autoconhecimento, boa conduta, consulta ao oráculo e ebó.
E a terceira? Me parece que aí entra o sentido do samba do Salgueiro. É Akuleba, a manifestação em nós das características de um orixá; aquelas que adquirimos na grande viagem que fazemos do Orum (o invisível) ao Ayê (essa vida na terra) nos ventres das poderosas mães.
Conclusão: Olori Xangô é uma fortíssima evocação da espiritualidade de Xangô presente em cada um de seus filhos. No caso do refrão, o grande filho me parece ser o próprio Salgueiro.
Esse samba, do Marcelo Motta, Fred Camacho e parceiros, é quente!




Acessado em08/02/2019

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O samba do Salgueiro


 Acessado em08/02/2019

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O poder do Machado de Xangô - Globo Reporter. Completo


Acessado em08/02/2019
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Copiei de um quadrinho que tenho em casa

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